Thursday, 28 de March de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1281

Como funciona o poder no Brasil

Foi o general Golbery do Couto e Silva quem, no final de outubro de 1984, convenceu o candidato Paulo Maluf, já previamente derrotado, a manter sua candidatura à Presidência – e assim impediu atropelos e garantiu a vitória de Tancredo Neves e o fim da ditadura. Foi o então presidente João Figueiredo quem tirou o general Newton Cruz do Comando Militar do Planalto, para acalmar os ânimos e enfraquecer os inventores de atentados. Foi o ex-presidente Ernesto Geisel quem, em conversa com Tancredo, “segurou as tropas”, para garantir que se completasse o “seu” projeto de abertura.

Episódios como esses, decididos nos bastidores e mostrando a história a passar nos corredores ou nos quartéis, se espalham, às dezenas, pelas 860 páginas de Tancredo Neves – A Noite do Destino, que o jornalista José Augusto Ribeiro lança na quarta-feira, 11, no Rio, marcando os 30 anos da morte do presidente da redemocratização, ocorrida em 21 de abril de 1985.

Para reuni-los, Ribeiro trabalhou cerca de 15 anos, juntando documentos pessoais do presidente, anotações de trabalho – pois foi assessor dele durante a campanha presidencial –, entrevistas e muita pesquisa. “A ideia inicial era um livro menor, sobre as viagens de Tancredo ao exterior em 1985”, diz o autor. “Que nada, vamos fazer uma coisa completa”, propôs o publicitário Mauro Salles, que pretendia dividir o projeto com ele. “Mas o Mauro nunca tinha tempo e eu fui tocando sozinho”, conta Ribeiro, que nos anos 80 e 90 ocupou altos postos no jornalismo e na TV.

Testemunho direto

A lista de biógrafos de Tancredo já é de bom tamanho – dela constam nomes como Mauro Santayana, Ronaldo Costa Couto, Luiz Mir, Rubens Ricupero, Augusto Nunes, Fernando Lyra. Ribeiro enriquece o clube com um trabalho de fôlego, que principia na Revolução de 1930 e chega aos anos 90, cujos pontos fortes são o testemunho direto, a organização e a preciosidade dos detalhes.

Por exemplo, quando Tancredo definiu o que de mais importante havia acontecido em seus nove meses como primeiro-ministro de João Goulart: “Do primeiro ao último dia, o acontecido mais importante foi o que impedimos de acontecer”, resumiu, numa referência às constantes pressões de militares radicais para derrubar o governo. Ou ainda em atos de coragem, como quando incentivou Getúlio a resistir, na véspera de seu suicídio: “Se fizesse meia dúzia de prisões, estaria tudo liquidado.”

Da longa travessia do biografado – que ele conta desde menino, em São João del Rey – o autor destaca o que chama de “três convocações da história” – em 1953, em 1963 e 1984. Na primeira, como grande conselheiro dos últimos dias de Getúlio Vargas. Na segunda, indo ao Uruguai convencer João Goulart a aceitar ser presidente em um regime parlamentarista. E por fim, a tensa campanha presidencial e os dramáticos meses de 1984 até sua morte no Incor, em São Paulo, coroada por uma inacreditável sequência de erros médicos. Dias antes do fim, destaca-se este diagnóstico do médico Renault Mattos Ribeiro: “Tudo indica que dá pra segurar no antibiótico até depois da posse.”

Nesse último desafio vêm à luz uma sequência de atentados contra Tancredo e contra o seu suporte militar, o general Leônidas Pires. Também impressiona, pela ironia, um boato espalhado por adversários, em setembro de 1984, segundo o qual Tancredo estava doente e não conseguiria governar.

A admiração do autor pelo biografado resulta em uma narrativa reverente, em que não sobrou espaço para falar de seus eventuais erros nem para trazer à luz, por exemplo, suas relações afetivas com dona Antonia Gonçalves de Araújo, sua secretária particular por 15 anos. Essa escolha, no entanto, em nada diminui o mérito da história. Pelo dito, pelo feito, pelo evitado, o que o livro oferece, ao final, é um dos mais completos relatos sobre como funciona o poder no país.

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Gabriel Manzano, do Estado de S.Paulo