Saturday, 20 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

Fósseis eletrônicos

Tudo começou com o micro de casa travado. Era o sistema operacional com a famosa e fatal “tela azul”. “É a vida”, pensei, e fui atrás do CD de instalação: não lia. Tentei outras versões, tentei um monte de vezes e… acabei destruindo o diretório do disco rígido. Bem, nada de muito inesperado nem de intratável: é só persistir. Que tal começar com um novo disco rígido? E é aí que a porca torce o rabo. Meu velho micro usa discos IDE e tem “floppy”. Não é fácil achar discos IDE e menos ainda recuperar o becape (claro, feito há mais de ano). Eis aí todos os ingredientes para uma dor de cabeça…

Num artigo recém-publicado do Vint Cerf, ele recomenda que imprimamos em papel as fotos de que mais gostamos, para garantir que o acesso a elas continue possível. É um conselho precioso! Quantas fitas cassete temos que não conseguiremos mais ler? Vídeos gravados em VHS? Eu tenho algumas óperas gravadas em discos laser de 12 polegadas, duas faces. Do tamanho dos velhos elepês, tem boa imagem, ótimo som mas… e o equipamento para ler? Quem conserta? Ainda suporta conserto?

Quando saí da USP gravei arquivos pessoais em fitas de rolo digitais, 10 polegadas, 12 trilhas. Servem no máximo para mostrar a alunos de história da computação…

Estamos cercados de fósseis eletrônicos e cremos que ainda funcionam e que podem ser usados. Tente ler sua coleção de discos “zip”, ou mesmo os “floppies”. Certamente não será fácil. Já as velhas listagens, naqueles formulários contínuos zebrados, se não estiverem comidas pelas traças ainda permitem leitura… sim, os egípcios, os gregos, os monges (e o Vint) tinham razão: papel dura, e o antigo, especialmente se for de pele de carneiro ou de trapos de pano, dura ainda mais.

Paciência e tempo

O jeito é manter um equipamento que ainda leia os velhos meios. Por exemplo, um toca-discos, com cápsula magnética de qualidade ainda lê bem os elepês. Mas não basta ler: preciso de um amplificador que aceite a saída que o toca-discos gera. Resolver a forma de manter e recuperar o que está gravado ainda não nos dá a garantia de aceder à informação.

O Stolfi, amigo meu e pesquisador de computação de primeira água, envolve-se com um caso mais enigmático: o manuscrito Voynich. É um documento medieval com mais de 200 páginas em pergaminho, cheio de belos desenhos da natureza e palavras que… ninguém consegue ler. Ao contrário dos hieróglifos, ninguém conseguiu decifrar o manuscrito Voynich, nem mesmo alguém da estatura de Jorge Stolfi! E isso acontece também com programas escritos em linguagens que não mais compilam, para rodar em sistemas operacionais que não mais existem, usando computadores que só se acham em depósitos.

Se queremos preservar o que temos e o seu uso, o trabalho não é pequeno. Afinal, Aristóteles sobreviveu a 2.500 anos porque preservamos o conhecimento do grego antigo e porque os monges, séculos após séculos, recopiaram o material em suporte confiável. Se queremos ter segurança é preciso empenho, paciência e tempo. O sábio Millôr é quem tem a palavra final: “O preço da segurança é a eterna chateação”.

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Demi Getschko é conselheiro do Comitê Gestor da Internet e colunista do Estado de S.Paulo