Thursday, 28 de March de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1281

Mídia e gênero

Em 8 de março é comemorado o Dia Internacional da Mulher. A escolha da data é uma homenagem a centenas de trabalhadoras estadunidenses que foram covardemente assassinadas na cidade de Nova York em 1857 após reivindicarem melhores condições de trabalho. Desse modo, temos uma excelente oportunidade não apenas para relembrarmos as diversas lutas políticas das mulheres, mas também para analisarmos a atual situação do gênero feminino em nossa sociedade de maneira geral, e na mídia em particular. No decorrer da história, em praticamente todas as organizações sociais a mulher foi o sujeito a ser alienado nas relações dialéticas entre gêneros. Nas religiões (principalmente para as três grandes crenças monoteístas – judaísmo, cristianismo e islamismo) o feminino geralmente representa o pecado, associado aos prazeres da carne, à desobediência e às mais diversas formas de tentação. Diante dessa realidade, não é por acaso que Lilith, primeira mulher a questionar a dominação masculina segunda a mitologia judaica, foi banida da Bíblia.

Segundo os pensadores marxistas, o advento da propriedade privada trouxe mais uma maneira de oprimir a mulher. Com a transmissão da herança pela linha paterna, o marido, para evitar a traição, garantindo assim que os seus bens fossem destinados exclusivamente aos seus filhos legítimos, passou a confinar a esposa estritamente ao âmbito doméstico, como se fosse mais uma de suas posses. A partir de então, a mulher ficou totalmente submissa ao homem, pois, ao não poder sair de casa, sua própria subsistência passou a depender de seu companheiro.

Conforme salientou a escritora feminista Rose Marie Muraro no livro Um mundo novo em gestação, por meio da dominação econômica, no decorrer das gerações, a mulher passou a desenvolver uma submissão psicológica ao introjetar a sua condição de inferioridade em relação ao homem. No século 20, com o surgimento de novas tecnologias comunicacionais, as campanhas publicitárias passam a ser mais uma maneira de estigmatizar o gênero feminino. O corpo da mulher transformou-se em mais uma mercadoria.

Desafio da contemporaneidade

Na TV brasileira, a hipersexualização e objetificação do feminino nos remetem pelo menos aos anos 1970, com as “chacretes”, o que foi exacerbado na década de 1990 em quadros dominicais, como “Banheira do Gugu”, e chegou aos dias hodiernos em programas como Pânico na TV, Legendários e nos reality-shows em geral. Não obstante, a grande diversidade brasileira não é contemplada pelos principais veículos de comunicação: o padrão de mulher representado pela mídia geralmente é branca, magra, jovem e heterossexual. Mulheres que não se encaixem nos padrões estéticos socialmente estabelecidos dificilmente têm espaço nos principais anúncios e programas. De acordo com uma pesquisa encomendada pelo Instituto Patrícia Galvão, 84% dos entrevistados concordam que o corpo da mulher é usado como chamariz para promover a venda de produtos e serviços na publicidade televisiva.

Fazendo uma relação entre as variáveis gênero e raça, não é difícil inferir que, no inconsciente coletivo do brasileiro, a figura da mulher de cor está intrinsecamente associada à sexualidade. Desde o período escravista, passando pelas comemorações carnavalescas e chegando às telenovelas atuais, negras e mulatas geralmente são retratadas como pessoas que supostamente possuem a libido aflorada, constantemente estigmatizadas como “mulheres quentes”. Em 2004, a primeira telenovela protagonizada por uma atriz negra (Tais Araújo) trazia o tendencioso título de A Cor do Pecado (não é preciso fazer um longo exercício hermenêutico para constatar que o “pecado” em questão é a luxúria). Portanto, a causa feminista não deve ser indissociável de temas como racismo, lesbiofobia e luta de classes.

Mesmo após várias conquistas das mulheres, a publicidade e boa parte da mídia continuam sendo norteadas por uma lógica sexista, herdada de épocas imemoriais. Diante desse contexto, construir uma realidade pautada pela igualdade entre os gêneros é um dos grandes desafios da contemporaneidade. E essa tarefa não está a cargo somente dos movimentos feministas, mas de todos aqueles que anelam por uma sociedade mais justa e solidária.

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Francisco Fernandes Ladeira é especialista em Ciências Humanas: Brasil, Estado e Sociedade pela Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF) e professor de Geografia em Barbacena, MG