A primeira página do jornal O Globo do dia seguinte às manifestações de 15 de março, contra “tudo isso que está aí”, estampa a manchete: “Democracia tem novo 15 de março”. Uma alusão ao acontecimento de 30 anos atrás, quando o Brasil voltou a ser uma democracia depois de 21 anos de ditadura. Comparava, assim, o animo democrático e festivo dos brasileiros daquela época com o espírito de agora que foi para as ruas em 34 cidades, de acordo com o mapa de protesto infografado e publicado na mesma edição.
Tanto no impresso quanto no canal aberto da TV da organização citada, a cobertura foi pautada pela perspectiva da manifestação pacífica, família, com criancinhas no cangote dos pais ou de mãos dadas com avós, significando um clima de celebração amorosa, fraterna e positiva. Representação que, no entanto, me parece não proceder dado o conteúdo substantivo que embasava o sentido do encontro daquele dia de domingo.
O ódio de classe estava manifesto, assim como os pedidos de intervenção militar, golpe de Estado, derrubada da presidente, extermínio do PT, eliminação dos políticos e do judiciário, entrega da Petrobras ao estrangeiro, tudo embalado pelo motivo-estopim “fim da corrupção”. E o trato jornalístico dado foi o de festa da democracia, com o suporte de inserções de chamadas ao vivo na TV Globo, desde as 8 da manhã, lembrando à população que o programa estava nas ruas para ser levado ao ar a todo o momento. É importante ressaltar o envolvimento do meio eletrônico/digital no acontecimento por causa da sua força de coesão, sobretudo nessa nossa modernidade tardia mediada pelas imagens. Desde o aparecimento da noção de público, a opinião deixou de ser um ato sem vínculo e passou a ser um grupo de juízo momentâneo que responde a problemas pontuais, se reproduzindo e dando a sensação de formar um corpo social em decorrência do transporte do pensamento à distância.
Quanto à democracia, no elementar é uma forma de convivência social em que o povo fala e se escuta mediado pela política, que é a prática de administrar as diferenças para evitar a violência braçal e, se possível, a verbal. É um exercício diário de limite e expansão de direitos. A democracia, seja ela representativa, que é o nosso caso, ou direta, não tem por princípio eliminar, matar, bater e arrebentar. Sua motivação é a escuta, que é o eco e a ressonância da fala de todos com o objetivo de refletir refreando a perversão do desejo. Por isso chamou atenção, dentre os muitos destaques do noticiário, a fala do pai orgulhoso relatando que a filha de seis anos por conta própria fez o cartão “Fora Dilma”. A meu ver, uma pedagogia regressiva que compromete o futuro do país quando ensina na base que democracia é a exclusão do outro. Soma-se a isso os panelaços. Eles não são para pedir, são para calar, para não deixar ouvir a voz do outro. Faz lembrar o episódio em que Galileu Galilei pedia aos padres que olhassem pelo telescópio a prova de que a Terra era redonda e girava em torno do sol e os religiosos desviavam o foco da observação para o ponto que não sustentava a tese do físico italiano.
Obrigar o outro a dizer o que não pensa
Já que não foi o PT, mas sim, o PP, o partido que mais apareceu no caso das propinas da Petrobras, que havia deputados denunciados de tantos outros partidos e os nomes da presidente Dilma e do ex-presidente Lula não constaram da lista do procurador geral da República, Rodrigo Janot, alguns jornais tiveram que mudar a estratégia. Na missão de cumprir o pacto virtual de transporte à distância firmado com seus seguidores de opinião, e na disputa por novas adesões para consolidar a coesão necessária ao fortalecimento da sua coerência ideológica, o jornal O Globo trabalha com o fermento da corrupção em suas principais colunas e notas. Ainda na segunda-feira (16/3), dia seguinte da manifestação do “contra tudo o que está aí”, a nota “Ponto final” da coluna “Ancelmo Góis” foi um desses imperativos recursos discursivos, desde o título. Diz a nota:
“O PT pode dizer o que quiser: que as manifestações que levaram mais um milhão de pessoas às ruas, por exemplo, foram coisa da elite branca, de coxinhas ou mesmo golpistas. Este discurso até conforta a alma do militante petista, mas não resolve o problema do morador de Niterói, que vai pagar um reajuste de 35% na conta de luz, e nem vai apagar da memória do brasileiro a roubalheira da Petrobras. Não reconhecer que há um problema é chamar mais problema. Ou, como ensinava o hábil político Petrônio Portella (1925-1980): ‘Não se briga com os fatos’.”
O fato é que PP não é PT e a presidente Dilma e o ex-presidente Lula não foram denunciados. Mas isso é abafado pelo panelaço e silenciado pelo jornal que não desiste de buscar a responsabilidade no PT e nos presidentes eleitos pela legenda. O reforço ao que vem sendo chamado de jornalismo investigativo para tirar o PT do poder veio também na coluna Miriam Leitão, de terça-feira, 17 de março. Com o título “A mensagem não chegou”, construiu o raciocínio de que a presidente não entendeu nada dos protestos porque admitiu como um erro do seu governo ter deixado o Fies nas mãos dos empresários da educação dando o controle das matrículas para o setor privado. O texto da coluna reage afirmando que o que se trata é que a Petrobras, a “maior empresa do país foi assaltada. O roubo levou ao enriquecimento ilícito de ex-dirigentes e, pelo mesmo canal, o partido do governo foi financiado”.
A presidente admitiu o erro que não interessou ao jornal, muito pelo contrário. E também não reconheceu o problema que o jornal desejava que fosse reconhecido. Aí reside a linha sutil em que o fascismo se instala. Fascismo, é preciso lembrar, é obrigar o outro a dizer o que não pensa, não sente, não tem, não reconhece e não admite. E parece que a pressão midiática insuflada nas ruas não vai parar enquanto seus adversários não disserem o que eles querem que seja dito. Houve um tempo em que era perigoso não ser fascista. A julgar pelo noticiário, temo pelos dias de hoje.
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Maria Luiza Franco Busse é jornalista e doutora em Semiologia