No início de novembro deste ano, a CNN decidiu despedir 50 jornalistas. A maior parte, fotojornalistas, câmeras e outros profissionais da imagem. Seu trabalho agora ficará a cargo doiReport, o “braço cidadão” da emissora, que foi transformado numa rede social de notícias onde cada colaborador terá um perfil e mais toda a parafernália característica destas mídias sociais.
O iReport é uma das poucas experiências bem-sucedidas de jornalismo-cidadão. Foi criado em 2006 e hoje em dia já está amadurecido e preparado o suficiente para fazer o serviço de profissionais. O site The Atlantic Wirenão deixou de registrar que “há pouca dúvida que a CNN quer o iReport para ser um poupador de dinheiro e uma fábrica de ‘furos’. O uso de amadores vem se consolidando, entre muitas das grandes empresas de comunicação, graças a seu custo zero”.
O jornalista Jay Gabler, discutindo um caso semelhante em 21/9 deste ano (fotógrafos profissionais que perdem o lugar para amadores), vê a coisa de modo diferente da maioria dos jornalistas que já sentiu na carne o custo da colaboração entre as redações e os jornalistas “cidadãos”. Ele não recebe nada pelo que escreve no Twin Cities Daily Planet (uma pequena publicação do meio-oeste americano) nem pelas fotos que tira. Gabler só é pago pelo trabalho de editor do periódico e trabalha numa universidade como professor. Ele crê que o preço do jornalismo colaborativo é escrever de graça. Mas acha que a coisa compensa, no final. Porque mais vozes são ouvidas e forma-se um panorama mais variado de informações, ele acredita.
Gratificação do ego
Mas é necessário ter cuidado e não idealizar a relação entre os “jornalistas cidadãos” e os profissionais da notícia. Há muito a ser investigado ainda. Muitas vezes forja-se uma relação não-saudável entre o jornalismo pago e o “colaborativo”: o jornalismo profissional pago reduz suas despesas apropriando-se de trabalho gratuito. É uma relação assimétrica de exploração onde todos perdem: os jornalistas profissionais, que são despedidos, e os amadores, que vão ter que fazer o serviço sem nada receber. Sua única função é cortar custos no processo de produção de notícias. O caso do iReport, a equipe amadora que abocanhou o trabalho de 50 profissionais na CNN, é um bom exemplo disso. E quem acompanhou o desenvolvimento do grupo sabe que o iReport é uma equipe bem preparada pela própria emissora para exercer funções que anteriormente eram remuneradas.
É necessário também não perdermos de vista que este momento de encantamento do público com colaborações voluntárias pode ser transitório. Um dia poderá arrefecer. Ou acabar. Ou a evolução tecnológica terminará por viabilizar a sustentação econômica de projetos autônomos de jornalismo participativo. Ou ainda apontar para outra direção que ainda não podemos antever. A cena midiática que virá é ainda muito incerta para qualquer tipo de presciência.
Tiago Dória, jornalista do Último Segundo, acredita que o jornalismo-cidadão é algo muito mais ligado “a uma economia não-monetária, em que as moedas são reputação e atenção”. Os colaboradores estariam, então, a escrever mais movidos por gratificação do ego do que qualquer outra coisa. Mas será que a coisa é mesmo assim? Será que quem atua como jornalista-cidadão o faz somente por gratificações ao ego? Não existem aqueles que escrevem, editam e fotografam para promover a existência de um jornalismo alternativo? Por outro lado, será que não existem também os colaboradores que esperam gratificações futuras?
“Cidadã Mayhill”
O incrível caso de Mayhill Fowler, que ocorreu em 2008 nos Estados Unidos, é ilustrativo deste último caso e da grande imaturidade que ainda predomina no jornalismo-cidadão. Ela escreveu por anos para o Huffington Post sem nada receber. Fowler é uma boa escritora, de mais de 60 anos, que um dia tornou-se a mais famosa jornalista-cidadã de seu país. Ela investia na atividade. Viajava atrás de grandes reportagens. Certo dia, ao cobrir uma tarde de arrecadação de fundos para a campanha de Barack Obama, em 2008, ela o ouviu declarar que “os habitantes da Pensilvânia, que perderam milhões de empregos e que nunca mais voltaram à região, tornaram-se amargos e acabaram por voltar-se para armas e religião”.
Naqueles dias, a grande questão na campanha de Obama era o porquê de sua impopularidade nos estados conservadores dos Estados Unidos, como a Pensilvânia. E a srª Mayhill Fowler conseguiu em primeira mão a opinião do então candidato sobre esta questão. Escreveu e publicou matéria sobre a declaração controversa do atual presidente dos Estados Unidos. Foi sucesso no Guardian, no New York Times e tornou-se a jornalista participativa mais famosa da América. O caso que ela cobriu foi chamado de bittergate, nos Estados Unidos. Os humores explícitos do então candidato, somados à presença da srª Fowler na hora e lugar certos, impulsionaram a cidadã jornalista às alturas. O caso chegou mesmo a provocar algum despeito na grande imprensa. A revista The New Yorkerpublicou matéria intitulada “Cidadã Mayhill”, numa clara alusão ao fato de que ela poderia ser aceita como cidadã, mas nunca como jornalista.
O preço é escrever de graça
Mayhill Fowler cometeu muitos erros. O mais fatal deles foi propor a Arianna Huffington um orçamento para uma grande reportagem em que cobrava 2.500 dólares por mês à proprietária do grande agregador de notícias. Arianna não concordou em pagar nada a ela. E a srª Fowler acabou por virar piada na imprensa americana. Afinal, por que ela acreditou que alguém que sempre recebeu dela trabalho gratuito iria, de repente, passar a pagá-la? E por que ela, em especial, se Arianna havia logrado a façanha de convencer uma enorme quantidade de blogueiros a escrever de graça para sua publicação? Mas mesmo assim, ela insistiu na ideia de que o site devia alguma coisa a ela. Que ela deveria ser paga pelo que havia feito. Grande engano.
Fowler cometeu mais dois erros graves: o primeiro foi o de publicar em seu blog a troca de e-mails entre ela e o Huffington Post, onde ela tentava convencer um dos executivos da injustiça que estaria acontecendo, com o site negando-se a pagar por qualquer conteúdo produzido por ela. Um ato de puro amadorismo. Ela mesma o reconheceria, pouco tempo depois. O segundo foi a sua petulância: ela tentou forçar a entrada na profissão, numa área difícil do jornalismo, com apenas uma grande reportagem. Não há espaço para petulância no jornalismo profissional. Ou em qualquer outra atividade profissional paga. A petulância é característica dos diletantes e amadores. Mayhill Fowler aprendeu de modo rude que o preço do jornalismo participativo é escrever de graça.
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[Sergio da Motta e Albuquerque é mestre em Planejamento urbano, consultor e tradutor]