Thursday, 21 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

A liberdade de comunicação não é absoluta

O Ministério Público Federal (MPF), por intermédio da procuradora Regional dos Direitos do Cidadão, Adriana da Silva Fernandes, ajuizou na segunda-feira (1/12), na Vara Cível da 1ª Subseção Judiciária de São Paulo, uma Ação Civil Pública (ACP) contra a Rede TV!, em função da cobertura ‘jornalística’ do seqüestro de Santo André (ver, neste Observatório, ‘As lições do caso Santo André‘).

Duas foram as razões básicas apresentadas: primeiro que, embora já tivesse sido advertida, a concessionária exibiu, sem autorização judicial, no dia 15 de outubro, entrevista ‘ao vivo’ com a adolescente Eloá Cristina Pimentel, que estava sendo mantida refém pelo ex-namorado, transformando-a, junto com o seqüestrador, numa das atrações principais do programa A Tarde é Sua; e, segundo, que analisado o conteúdo da entrevista, verificou-se que a RedeTV! cometeu ato abusivo, explorando, durante quase uma hora, a situação em que se encontravam as adolescentes Eloá, sua amiga Nayara e Lindemberg Alves, ex-namorado da primeira, interferindo, indevidamente, em investigação policial em curso.

O MPF requereu que a Rede TV! seja condenada ao pagamento de indenização por danos morais coletivos no valor de 1,5 milhão de reais, acrescidos de juros moratórios e correção monetária, valor que deverá ser revertido ao Fundo de Defesa de Direitos Difusos [o texto completo da Ação Civil Pública pode ser lido aqui].

Noticia-se que a Rede TV! só se manifestará após ser notificada. A concessionária, no entanto, reafirmou que ‘sempre defendeu a liberdade de expressão e o não cerceamento do direito do jornalismo informar os telespectadores’. Segundo sua assessoria de comunicação, ‘a iniciativa do MPF é uma forma velada de censura’.

Reafirmação de princípios legais

Ao justificar sua competência para tratar do caso, o MPF lembra que a RedeTV! é concessionária de um serviço público federal e que faz parte de suas funções constitucionais ‘a defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis’. Além disso, a Lei Complementar que dispõe sobre as atribuições do MP lhe atribui expressamente ‘zelar pelo efetivo respeito dos Poderes Públicos da União e dos serviços de relevância pública e dos meios de comunicação social aos princípios, garantias, condições, direitos, deveres e vedações previstos na Constituição Federal e na lei, relativos à comunicação social’.

Por outro lado, quando apresenta as razões de direito, são reafirmados princípios normativos sempre presentes no debate sobre a regulação da mídia e recorrentemente questionados pelos representantes do sistema privado de radiodifusão (ver ‘Novo conceito jurídico para sistema privado de TV‘): os limites da liberdade de imprensa; o caráter de serviço público das concessionárias e sua conseqüente subordinação ao direito público; e a necessidade de controle democrático no interesse da sociedade. Vale a longa citação:

‘A Constituição Federal garante plenamente a liberdade de expressão e de manifestação do pensamento, de criação, de expressão e de informação, vedando qualquer censura de natureza política, ideológica ou artística (art. 220, caput e § 2º). No entanto a liberdade de comunicação social não é absoluta, devendo estar em compasso com outros direitos inseridos na Constituição Federal, dentre eles o direito à privacidade, à imagem e à intimidade dos indivíduos (art. 220, § 1º e art. 5º, X), bem como os valores éticos e sociais da pessoa e da família (art. 221, IV).

Ademais, o art. 53 da Lei 4.117/62 declara que constitui abuso, no exercício da liberdade de radiodifusão, o emprego desse meio de comunicação para a prática de crime ou contravenção previstos na legislação em vigor no País, inclusive para incitar a desobediência às leis ou decisões judiciárias; comprometer as relações internacionais do País, ofender a moral familiar, pública, ou os bons costumes; colaborar na prática de rebeldia desordens ou manifestações proibidas.

É importante dizer que, ao contrário do que pensa o senso-comum, a Ré não é ‘proprietária’ do canal em que opera. É, na verdade, uma concessionária do serviço público federal de radiodifusão de sons e imagens, e, como tal, está sujeita às normas de direito público que regulam este setor da ordem social.

Justifica-se o regime jurídico de direito público porque, diversamente do que acontece nas mídias escritas, as emissoras de rádio e TV operam um bem público escasso: o espectro de ondas eletromagnéticas por onde se propagam os sons e as imagens. Trata-se de um bem público de interesse de todos os brasileiros, pois somente por intermédio da televisão e do rádio é possível a plena circulação de idéias no país. A liberdade de comunicação deverá ser protegida sempre que cumprir sua função social, mas será submetida a controle quando incorrer em abuso. Referida liberdade é uma garantia instituída pela sociedade e para a sociedade, não se podendo admitir, portanto, que seja utilizada contra esta’.

Certamente existem muitas outras razões para a regulação e a fiscalização democráticas do conteúdo e da programação das empresas concessionárias de radiodifusão, inclusive, de coberturas ‘jornalísticas’ de episódios como o seqüestro de Santo André.

Mídia e violência

A BBC Brasil, por exemplo, divulgou em 20 de novembro passado, após o caso Eloá, os primeiros resultados de uma longa pesquisa realizada por professores da Rutgers University, nos EUA, que vincula a violência na mídia a agressividade em jovens. Esse vínculo tem sido reconhecido por especialistas nos últimos 40 anos.

No estudo, foram entrevistados 820 adolescentes do estado de Michigan. Destes, 430 eram alunos do ensino médio de comunidades rurais, suburbanas e urbanas. Outros 390 eram delinqüentes juvenis detidos em instituições municipais e estaduais, distribuídos equilibradamente entre os sexos masculino e feminino. Pais ou guardiões de 720 deles também foram entrevistados, assim como os professores ou funcionários que lidavam com 717 dos jovens.

A pesquisa revela que mesmo considerando outros fatores como talento acadêmico, exposição à violência na comunidade ou problemas emocionais, a ‘preferência por mídia violenta na infância e adolescência contribuiu significativamente para a previsão de violência e agressão em geral’. E conclui: ‘você é o que assiste’, quando se trata da população jovem (disponível aqui).

Reponsabilização legal

Não se sabe se o juiz da Vara Cível da 1ª Subseção Judiciária de São Paulo vai ou não acatar a ação proposta. A iniciativa do MPF paulista, no entanto, mostra – como já comprovado em outras poucas ocasiões – que, dentro do atual arcabouço legal, existe a possibilidade de ações em defesa de direitos fundamentais do cidadão.

Mesmo que o sistema privado de radiodifusão prossiga na sua tentativa de confundir a questão evocando o fantasma da censura, é reconfortante saber que o MP está cumprindo o seu dever e pode, sim, responsabilizar legalmente os concessionários de radiodifusão pelos abusos que cometem.

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Pesquisador sênior do Núcleo de Estudos sobre Mídia e Política (NEMP) da Universidade de Brasília e autor/organizador, entre outros, de A mídia nas eleições de 2006 (Editora Fundação Perseu Abramo, 2007)