Amy Winehouse morreu. “Não”, dirão seus admiradores, “ela está viva, pois sua música vive em nós!” Se pensarmos que o suposto rei do rock, Elvis Presley, também não falecera, já que a indústria – não somente a fonográfica – forja, anualmente, novas mercadorias (LPs, CDs, DVDs, roupas, canecas, preservativos, óculos etc.), de fato a cantora inglesa não foi para o andar de cima. Na verdade, seu corpo foi cremado e a cerimônia fúnebre seguiu os ditames do judaísmo. Mas, como se sabe, não se mata um mito a punhaladas, tampouco com tóxicos e entorpecentes. Além disso, conforme a data de validade, qualquer produto perece: 27 anos talvez seja a data de fabricação.
Diferentemente da diversidade intrínseca às tradições milenares, aos saberes locais, à cultura popular e todo e qualquer tipo de manifestação cultural que havia perdurado durante séculos, a cultura de massa preza pela homogeneização. Assim, ao contrário do que os meios de comunicação têm disseminado a respeito da idade com que Winehouse morreu, não há nada de esotérico ou cabalístico morrer com 27 anos. Ela estava predestinada, assim como os ídolos pop que a antecederam – Jimi Hendrix, Jim Morrison, Janis Joplin, Kurt Cobain, dentre outros –, a cumprir uma tripla função, enquanto mero objeto de consumo:
1.Neutralizar quaisquer tentativas de resistência à estrutura econômica e às respectivas superestruturas políticas, jurídicas, culturais, ideológicas, mediante a suposta exortação da própria resistência. Ora, o fato de os soldados norte-americanos terem ouvido o hino de seu país sendo executado por Hendrix não diminuiu nem amenizou as atrocidades cometidas durante a Guerra do Vietnã. Kurt Cobain incomodava-se com o fato de ter saído do underground e com todas as picuinhas do tão demandado sucesso. As drogas, contudo, não foram o bastante para seu processo autodestrutivo; somente um tiro foi capaz de tirá-lo da roda viva. Será? Amy Winehouse, embora tenha tido uma considerável formação musical – ligada principalmente ao jazz –, optara por atender às exigências de padronização, fácil assimilação e reciclagem, a fim de ser consumida universalmente por todas as classes, etnias, faixas etárias, credos. Tatuagens? Foi-se o tempo em que eram adorno de marginais e marinheiros. Sua resistência resumia-se em se recusar a cantar; menos por vontade que incapacidade etílica.
Admiradores podem dormir tranquilos
2.Contrabalançar os resultados gerados pelos demais segmentos, não excludentes, da indústria cultural. No cinema, ainda que vez e outra um traquina tente subverter a lógica, é o happy end que insiste em predominar. O lendário Rocky Balboa pode lutar com árabes, africanos, russos, chineses, vietnamitas ou latino-americanos. Não importa o adversário: ele sempre vencerá: “Sempre seremos AAA”, compactua Barack Obama. Nas telenovelas, por mais que o assassino pareça escapar a cada capítulo, o bem, ao término, prevalecerá. O galã branco, esbelto e abastado irá se casar com a musa branca, gostosa e, talvez, endinheirada. Pobreza? Todos são muito bem nutridos e, acima de tudo, felizes. Com exceção, é claro, do vilão, o qual expiará os pecados alhures. Felizmente, a vida é muito mais complexa. E, se a arte sempre tentou ser, de alguma forma, o reflexo da existência, a arte-mercadoria de massa também o fará. De maneira torpe, é bem verdade. Sob essa perspectiva, a morte de Amy Winehouse e consortes devolve à manifestação artística seu caráter trágico. Produz, aliás, o mesmo efeito que as catástrofes naturais e os acidentes aéreos, cujo formato da notícia, não por acaso, também é o folhetim – quanto maior a expectativa provocada, maior o número de vendas.
3. Por fim, a terceira função ou missão refere-se justamente ao objetivo final da mercadoria: ser consumida. Para tanto, ela precisa ser produzida e, conforme as exigências do mercado, propagandeada. Essa tarefa é, sem dúvida, a mais árdua, pois ela precisa manter-se viva mesmo estando morta. Ante o neofilismo da sociedade contemporânea, ela precisa provar que, apesar de decrépita, ao consumi-la, o consumidor terá sensações nostálgicas e prazeres retumbantes. Não obstante os discos e filmes que levarão seu nome-marca, Amy Winehouse continuará sendo fabricada e comprada de diversas formas: através da indústria da moda (roupas, acessórios, sapatos etc.); da indústria de cosméticos (maquilagem, produtos capilares etc.); da indústria das drogas lícitas (álcool, tabaco, remédios etc.); da indústria de drogas ilícitas (maconha, cocaína, craque, heroína, êxtase etc.) e da indústria da mídia (jornais, revistas, programas de rádio e TV etc.). Seus admiradores-compradores podem dormir tranquilos: Amy Winehouse não morreu.
***
[Gabriel Tardelli é jornalista, Niterói, RJ]