Embora os manuais de redação em geral nem façam referência, a maioria dos jornais brasileiros entende que suicídios não devem ser noticiados. O principal argumento usado para justificar esta posição é o suposto fato de que ‘suicídio é contagioso’. Isto é, a notícia de um suicídio tende a estimular aqueles propensos a comportamento semelhante a praticá-lo. Na origem de tal concepção é indefectível a referência ao chamado ‘efeito Werther’. Quando das primeiras exibições da peça teatral O sofrimento do jovem Werther, de Johann Wolfgang Von Goethe (1749-1832), a incidência de suicídios entre jovens, na Alemanha da época, acentuou-se de forma incontestável.
Apesar do fato de ser ‘contagioso’ e das referências ao ‘efeito Werther’, os jornais, quando entendem tratar-se de questão de interesse público, sempre terminam por noticiar os suicídios.
Arthur Dapieve, jornalista de O Globo, no seu recém-lançado Morreu na contramão – o suicídio como notícia, supera o senso comum e faz um esforço para tentar compreender a questão de uma maneira menos superficial. O livro tem como base a dissertação de mestrado que o autor defendeu no ano passado na PUC-RJ, cujo título é ‘Suicídio por contágio: a maneira pela qual a imprensa trata a morte voluntária’.
Dapieve revisita os mais importantes estudos sobre suicídios. O clássico O suicídio de Emile Durkheim (1858-1917), que aponta a anomia como uma causa do crescimento da incidência da morte voluntária, mas distingue entre suicídios egoístas e altruístas. Os suicídios egoístas são aqueles em que a motivação de quem pratica a morte voluntária são problemas, questões ou dramas essencialmente pessoais. Nas palavras do autor, interpretando o clássico, aquele ‘praticado por quem já não vê razão de ser na vida’. O suicídio altruísta é aquele em que a intenção de quem o pratica é de que o ato extremo produzirá bons efeitos na sociedade.
Riqueza de detalhes
O desempregado que ateou fogo às vestes em frente ao Palácio do Planalto para ‘protestar’ contra Lula é um típico suicida altruísta, embora evidentemente a motivação maior era a situação pessoal do trabalhador, que morreu dias depois. Assim como os ‘homens-bombas’ ou ‘jihadistas’, esta forma de suicídio é bastante diversa. Os haraquiris japoneses diferem dos camicases, que se diferenciam dos atuais suicidas-terroristas. Mas no rigor de Durkheim, que Dapieve preserva, no suicídio altruísta ‘o motivo da morte voluntária até é considerado louvável o bastante para não ser qualificado como suicídio.’ E, aí, cita o que chama de ‘exemplo extremo’: Jesus não seria um suicida ‘ao caminhar para a morte certa, consciente de ser ela a sua missão na terra’. Seria o abençoado Jesus tão suicida como o amaldiçoado Judas? – pergunta Dapieve, lembrando que o fato tomou três séculos de debates entre os teólogos.
A idéia do suicídio como contágio é de Dukheim, que chega a afirmar que ‘o suicídio é eminentemente contagioso’ e que ‘não há dúvida que a idéia de suicídio se transmite por contágio’. Para mostrar a importância que Durkheim dá ao conceito, o autor lembra que um dos capítulos do famoso livro O suicídio foi batizado como ‘A imitação’ (pág. 47).
Dapieve se debruça também sobre a obra de Albert Camus (1913-1960), em especial o livro O mito de Sísifo: ensaio sobre o absurdo. É nesta obra que Camus escreve aquela frase que se tornaria famosa:
‘Só há um problema filosófico verdadeiramente sério: é o suicídio. Julgar se a vida merece ou não ser vivida é responder a uma questão fundamental da filosofia. O resto (…), vem depois’. (pág. 51)
Embora não seja propriamente um texto leve, a leitura é fluente apesar da densidade e da riqueza de detalhes que o autor usa para tratar do tema.
Coberturas precárias
As mortes por suicídio de Primo Levi (1919-1987) e Cesare Pavese (1908-1950), ambos em Turim, são esmiuçadas a partir de estudo atento e sistemático de boas biografias. Noutro capítulo, o autor já analisa o suicídio de Getúlio Vargas (1882-1954). E este é usado como recurso para passar à segunda parte do trabalho. Exemplo feliz de mostrar um suicídio altruísta que era inquestionavelmente uma notícia e não resultou em contágio.
Neste aspecto, algumas mortes voluntárias praticadas no Brasil por personalidades públicas são deixadas de lado. Uma pena: Santos Dumont (1873-1932) e Stefan Sweig (1881-1942) poderiam certamente ilustrar melhor a pesquisa, pois a maneira como a imprensa da época noticiou suas mortes certamente traria elementos importantes para compreender o comportamento da imprensa de hoje.
O autor analisa vários casos de suicídios noticiados pelo jornal O Globo nos anos recentes. É a partir daí que Dapieve se liberta das amarras acadêmicas para debruçar-se sobre cada caso, cada edição, cada título, cada lide – e oferecer ao leitor reflexões instigantes e bem formuladas. o que faz com método e rigor. Nesta parte, o leitor nem mais se dá conta que o texto teve como base uma dissertação. Tanto melhor.
Se logo no início é explicitado ao leitor que o contágio é fato, mas decorre de uma série de outras circunstâncias, nesta última parte o autor analisa vários casos e várias formas noticiosas de forma a ilustrar sua conclusão. Antes de tudo, é preciso romper com a noção de contágio vista como senso comum e definidora de coberturas precárias ou simplificadas.
Trata-se de uma obra que não pode ser desconhecida por quem pretende compreender melhor as questões que envolvem a morte voluntária e a forma como a imprensa a noticia – seja jornalista, estudante de jornalismo, pesquisador de jornalismo, estudioso do fenômeno da morte voluntária ou qualquer um que tenha curiosidade no assunto.
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Jornalista, professor da Universidade Federal do Espírito Santo