Friday, 19 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

A imprensa e o bicheiro

 

Aberto oficialmente por unanimidade, no Conselho de Ética do Senado, o processo disciplinar contra o senador Demóstenes Torres promete abrigar também um ajuste de contas entre um grupo de parlamentares e a chamada imprensa de circulação nacional.

O núcleo de senadores interessados em estender a investigação sobre o esquema do bicheiro Carlos Cachoeira às suas relações com jornalistas tem entre seus representantes mais ativos o senador Fernando Collor de Mello e integrantes do Partido dos Trabalhadores. Nesta quarta-feira, dia 9, os jornais fazem especulações sobre as motivações do ataque, e os leitores podem estar certos de que essa questão irá contaminar todo o noticiário sobre o escândalo daqui para a frente.

O jornal O Globo já havia se manifestado em editorial, na terça-feira, 8, antecipando-se à possibilidade de órgãos da imprensa serem citados nas sessões da comissão que irá julgar o senador goiano. Sob o título “Roberto Civita não é Rupert Murdoch”, o jornal carioca criticou a última edição da revista Carta Capital, que traz um artigo com a afirmação de que o bicheiro Cachoeira andou pautando a revista Veja durante muito tempo.

Já se sabe que o bicheiro trocou cerca de duzentos telefonemas com o diretor de Veja em Brasília e, segundo Carta Capital, alega ser o pai de todos os “furos de reportagem” da revista da Editora Abril. Ao chamar Roberto Civita de “o nosso Murdoch”, Carta Capital acendeu a ira do grupo Globo e colocou em alerta todos os demais conglomerados da imprensa nacional.

As razões para a indignação do grupo Globo superar suas históricas divergências com o grupo Abril são muito claras: praticamente todos os grandes órgãos da imprensa se utilizaram em alguma medida de sugestões e informações vazadas pelo grupo de Carlos Cachoeira durante os escândalos seguidos que fizeram a alegria das redações nos últimos anos.

Muito provavelmente, os vazamentos de trechos de conversas gravadas que municiaram a imprensa durante esse período tiveram origem no personagem conhecido como Dadá – o sargento da reserva da Aeronáutica Idalberto Matias de Araújo, que oferecia serviços gerais de arapongagem ao esquema do bicheiro e outros clientes.

A hipótese de que muitas denúncias publicadas desde 2005 tiveram sua origem no grupo criminoso seria um golpe mortal para a credibilidade de toda a imprensa.

O fundo do poço

O “araponga” Dadá também era encarregado de contatar autoridades em nome de Carlos Cachoeira, o que o transforma em personagem importante no esquema do bicheiro.

Esse pequeno conjunto de evidências é mais do que suficiente para que Fernando Collor, Humberto Costa e outros parlamentares interessados em lavar em público a roupa suja da imprensa transformem a futura CPI Cachoeira-Demóstenes em um acerto de contas com as grandes empresas de comunicação do país.

A defesa da revista Veja, que alega ter apenas utilizado o bicheiro como informante eventual, não resiste à cotização com o senso comum: duzentos telefonemas representam um vínculo muito profundo e de plena confiança para se tratar apenas da relação eventual entre fonte e jornalista.

O editorial do Globo tem razão ao contestar o artigo de Carta Capital em defesa do dono do grupo Abril: Roberto Civita certamente não é Rupert Murdoch.

Rupert Murdoch criou um império de comunicação a partir de um jornal provinciano da Austrália. Roberto Civita está desmoralizando o império construído por seu pai, Victor Civita. Segundo o 247, o primeiro noticioso desenvolvido no Brasil para aparelhos móveis, o presidente do grupo Abril, Fábio Barbosa, estaria se preparando para deixar a empresa (ver em www.minas247.com.br). O motivo seria exatamente o envolvimento da revista Veja com o bicheiro Cachoeira e certas práticas que ele condena.

Saudado em agosto do ano passado como um choque de ética na empresa, Barbosa, que se destacou como presidente do Banco Real e teve rápida passagem pelo Santander, teria constatado que havia assumido uma missão impossível.

Que o grupo Abril tenha optado pelo suicídio ao permitir que sua principal publicação jornalística afundasse no jornalismo unilateral seria apenas uma opção de negócio. Mas a situação se torna mais interessante quando outros grupos de comunicação, ignorando seu dever de investigar as suspeitas de relações privilegiadas entre Veja e o bicheiro, tomam partido antes de iniciada a investigação.

O que já não se pode negar é que o jornalismo declaratório e alimentado por vazamentos de informações acabou envolvido e manipulado por um bicheiro de quinta categoria.

É o fundo do poço, ou ainda há mais a ser escavado?