Monday, 25 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

A imprensa no limite

Os jornais de terça-feira (18/6) calculam em “pelo menos 240 mil” o total de manifestantes que saíram às ruas em onze capitais do País, na véspera, para protestar contra alguma coisa. Os números variam de cidade para cidade, de jornal para jornal, como sempre, mas há um ponto comum em toda a imprensa: a causa do protesto é “alguma coisa” que ninguém consegue definir.

A Folha de S.Paulo tentou personalizar e apontar os alvos de faixas, palavras de ordem e vaias, alinhando nomes como Dilma, Alckmin, Haddad, Cabral, Sarney, Feliciano, partidos políticos, corrupção, inflação, Fifa, Copa do Mundo, imprensa, “e, claro, transporte público”.

O Globo viu até menção ao projeto que limita poderes de investigação do Ministério Público e arrumou um nome nada original para diferenciar os protestos no Rio de Janeiro: “primavera carioca”.

O Estado de S.Paulo observa que o movimento é “apartidário, mas não antipartidário”, ou seja, os manifestantes não aceitam a tutela dos partidos políticos mas não se opõem à sua existência.

Até mesmo as declarações de políticos selecionadas com destaque no noticiário vêm reforçar a tendência da imprensa a relativizar motivações e efeitos do fenômeno social que surpreendeu a maioria dos analistas.

O repertório de instrumentos produzidos pelas ciências humanas ao longo do século da indústria cultural tem pouca serventia para interpretar o primeiro grande evento nascido na aparente inconsistência das relações digitais.

Embora alguns autores, como Vilém Flusser, pensador checo que filosofou no Brasil, e o polonês Zygmunt Bauman tenham falado sobre uma “existência online” que interfere no mundo físico, e o advento de instituições líquidas, ninguém ainda produziu uma teoria unificadora capaz de explicar essas mobilizações massivas que podem ser ao mesmo tempo anárquicas e surpreendentemente organizadas.

Na impossibilidade de interpretar o fenômeno, a imprensa trata de acondicioná-lo em padrões reconhecíveis. Assim, o principal foco é quase uma louvação ao fato de que, sem a presença das tropas especializadas em repressão e controle, dezenas de milhares de pessoas puderam marchar por uma cidade como São Paulo, sem que se registrassem incidentes graves.

Oficiais da Polícia Militar caminharam ao lado de líderes do movimento, os dois lados trocaram informações sobre o trajeto, grupos radicais foram neutralizados pelos próprios manifestantes e até mesmo bandeiras de partidos foram arriadas ou tiveram que se acomodar a uma posição secundária.

O temor do desconhecido

De repente, aquilo que para os jornais era baderna e ação de vândalos se transformou em expressão de civilidade, de exercício legítimo do direito de manifestação. No entanto, as motivações difusas ainda dificultam o trabalho dos fazedores de manchete: afinal, contra quem mesmo é que essa multidão sai às ruas? Seria mesmo por causa de 20 centavos a mais nas tarifas de transporte público?

Nenhum jornal acredita mais nisso, e o impasse prossegue, porque o prefeito da capital paulista e o governador do estado afirmam que não podem voltar atrás e revogar o reajuste.

O Estado de S. Paulo concluiu que o alvo dos protestos são os políticos. O Globo quase se transforma num panfleto dos manifestantes ao anunciar: “Um país que se mexe – o Brasil nas ruas”. A Folha de S. Paulo ensaia uma síntese perigosa e irresponsável ao afirmar que milhares vão às ruas “contra tudo”.

Como na história indiana sobre os três cegos que tentam definir o que é o elefante, cada jornal apanha uma pata, um ventre, uma tromba e tenta descrever o todo por uma parte. A imprensa chegou ao limite de sua capacidade de interpretação – e costuma temer aquilo que não consegue decifrar.

Não se pode afirmar que os políticos, apontados assim como uma raça alienígena, sejam o foco das manifestações, porque, na democracia representativa, eles são escolhidos pela mesma sociedade que agora protesta.

Também não é possível que os manifestantes estejam “contra tudo”, porque o Brasil não vive uma crise econômica e as pesquisas demonstram uma percepção generalizada de bem-estar. Por outro lado, os 160 mil ou 240 mil que saíram às ruas representam majoritariamente parcela de uma geração, não o Brasil inteiro.

A relação da imprensa com os manifestantes passou rapidamente da condenação para um caso de simpatia-quase-amor. O maior risco para o movimento deixou de ser a Tropa de Choque: o perigo agora é o encanto da mídia.

Agora só falta os jornais elegerem a “musa do passe livre”.