Monday, 25 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

A ‘Folha’ errou – autocrítica tardia, incompleta, honesta

“Às vezes se cobra, desta ‘Folha’, ter apoiado a ditadura durante a primeira metade de sua vigência, tornando-se um dos veículos mais críticos na metade seguinte. Não há dúvida de que, aos olhos de hoje, aquele apoio foi um erro.

“Este jornal deveria ter rechaçado toda a violência, de ambos os lados (…).

“É fácil, até pusilânime, porém, condenar agora os responsáveis pelas opções daqueles tempos, exercidas em condições tão mais adversas e angustiosas que as atuais. Agiram como lhes pareceu melhor ou inevitável naquelas circunstâncias.” (Folha de S. Paulo, editorial, 30/3/2014, pág. 2)

 

“Aos olhos de hoje”, “opções daqueles tempos”, “naquelas circunstâncias” são expressões atenuadoras, suavizam, não condizem com a imperiosa clareza de uma autocrítica e a inteireza de um mea-culpa.

Sete meses depois do Globo, a Folha de S.Paulo admite o equívoco de apoiar o golpe militar e a ditadura instalada logo em seguida. A comparação com o concorrente (e parceiro) é fortuita, meramente referencial.

Porém, diferentemente do Globo, sempre linear, a Folha errou duas vezes: em 1964 e, novamente, em setembro de 1977, quando deu uma espantosa marcha a ré, desfazendo-se da sua corajosa reinvenção e anistiando aqueles que antes a converteram no braço impresso da repressão.

É certo que governo GG (Geisel-Golbery) forçou a direção do jornal a moderar o tom crítico dos articulistas, chegando mesmo a ameaçar alguns com a cassação dos direitos políticos. A guinada empreendida pelo jornal foi a um tempo excessiva e cosmética. Por um lado decepou o comando da Redação responsável pela formidável vitalização iniciada dois anos antes. Por outro, produziu uma aparatosa e fictícia troca na presidência da empresa. Os negócios continuaram prosperando, a success story continuou bem sucedida, mas o recuo editorial foi significativo. Mais do que isso: exemplar. Agiu como um antídoto para reprimir uma imprensa recém-despertada, ávida para recuperar seu papel político e, agora, advertida para não ultrapassar os limites.

Com a guinada, a Folha começou um processo de “depuração” na Redação eliminando-se paulatinamente os profissionais da velha guarda, pré-1964, capazes de inspirar o retorno de antigos ideais, paradigmas ou ceticismos. A moda pegou, a Folha tem este poder.

Convivência e tolerância

As erratas do Globo e da Folha têm algo em comum: não nomearam (ou não perceberam) o pecado-matriz, o erro-base da equivocada performance antes, no meio e depois do golpe: o de comportarem-se como entidades monolíticas esquecidas do compromisso orgânico de preservar a diversidade e a oxigenação nas suas páginas. Fizeram uma opção compacta, total, sem espaço para modulações, e pagam por isso até hoje.

Neste sentido, o falecido Jornal do Brasil foi mais prudente – por tradição e não opção – ao manter na página de opinião, ao lado dos editoriais, os artigos regulares de antigos colaboradores: Tristão de Athayde (Alceu Amoroso Lima) e Barbosa Lima Sobrinho, adversários do golpe e da ditadura e jamais tocados pela direção.

Ter opinião não é delito. Delito foi impedir que outros as expusessem ou delas desfrutassem. Por capricho dos fados, a imprensa que apoiou o golpe e foi escravizada pela ditadura não se permitiu o usufruto dessas primícias da democracia: a convivência e a tolerância entre os diferentes.

 

Letras garrafais, descobertas mirradas

Decepcionante a temporada de jornalismo histórico propiciada pelos 50 anos da quartelada de 1964.

Como que extenuada pelo brutal esforço de produzir a sua autocrítica, a Folha (autoconsagrada no mesmo dia como “o maior jornal do país”) apresentou no domingo (30/3), com o portentoso selo “Tudo Sobre”, pífia investigação histórica sobre a derrubada do presidente João Goulart. Uma pequena entrevista com o ex-ministro do Trabalho de Jango, Almino Affonso, a propósito do lançamento do seu livro, e um relato do evento organizado pelo Instituto FHC em torno do depoimento de José Serra, presidente da UNE em 1964.

Só. Na primeira página da edição que circulou em São Paulo, apenas uma pequena chamada relacionada com a data e autorreferente: “Democracia tem apoio recorde, mas é criticada, revela Datafolha”. No momento em que o jornal deveria sentir-se aliviado, esta inusitada discrição passa uma imagem de crispação, como se o leitor tivesse culpa do mea-culpa que o diário foi obrigado a fazer.

O Estado de S.Paulo saiu-se melhor. Mais relaxado, mais profissional. Destacado no cabeçalho da capa da edição de domingo, o caderno especial de 20 páginas resgata momentos importantes na vida do jornal nos últimos 50 anos. O “caso Gilles Lapouge” (debate epistolar entre o diretor Ruy Mesquita e o correspondente do jornalão em Paris, reproduzido no jornal) lembra a imprensa algo pluralista que já tivemos.

O Globo ofereceu uma magnífica exibição de jornalismo no primoroso caderno de 12 páginas com investigações dos veteranos repórteres José Casado e Chico Otávio sobre o atentado do Riocentro, em 30 de abril 1981. Repúdio maior ao golpe de 64 não poderia ser produzido.

A estarrecedora manchete “Figueiredo soube 1 mês antes do atentado do Riocentro” (domingo, 30/3) comprova que não apenas o general-presidente, mas também o comando do SNI e setores do DOI-Codi conheciam os detalhes de uma ação terrorista que, bem sucedida, poderia provocar centenas de mortes de jovens que assistiam ao show de música popular com um elenco de 30 artistas encabeçado por Elba Ramalho.

Para o próximo

Faltou jornalismo histórico, reconstituição dos bastidores. Faltaram respostas às perguntas que se fizeram há meio século e continuam inexplicadas. O que levou Jango a jogar pela janela a sua conhecida cautela e desperdiçar as lideranças reformistas que estavam ao seu lado? Por que se entregou aos delírios daqueles que o aconselhavam a “mandar brasa” e pediam “reformas na lei ou marra”?

Jango dispunha de um formidável time de conselheiros competentes, experimentados, respeitados, a começar por Carvalho Pinto, Santiago Dantas, Celso Furtado, Tancredo Neves. Deixou-os no sereno. Seu operador político, Jorge Serpa, com quem falava todos os dias pelo telefone, teve carta-branca em alguns momentos, mas não foi ouvido em outros, os cruciais.

O jovem banqueiro-mecenas José Luís Magalhães Lins chefiou a força-tarefa que venceu o plebiscito e lhe devolveu todos os poderes. Por que foi descartado? O Banco Nacional de Minas Gerais, que dirigia, foi quem financiou a venda da Tribuna da Imprensa para o Jornal do Brasil, calando seu principal opositor, Carlos Lacerda. E seis meses depois financiou a revenda daquela tribuna derrubadora de presidentes ao aguerrido Hélio Fernandes.

Jango preferiu calar Lacerda num desastrado pseudo-sequestro logo seguido pela não menos insana tentativa de pedir o Estado de sítio para intervir na Guanabara (manobra denunciada pela UNE, pelo PCB e até por seu próprio partido, o PTB).

O governador Miguel Arraes confessou pouco antes de 31 de março – e isso foi publicado em livro e jamais desmentido – que quaisquer que fossem os golpistas, de direita ou esquerda, ele seria o primeiro preso. Isso não seria suficiente para estimular nossas raposas políticas a remontar um quadro partidário onde havia tantas esquerdas?

Qual o mecanismo responsável pelo esquecimento de Paulo Maluf, a criatura mais perfeita da ditadura? Está vivinho da silva, incansável na missão de proporcionar denúncias e processos, porém raramente retratado como ícone do regime de exceção. Perdeu-se uma bela oportunidade para biografá-lo.

Este inexplicável conformismo com relação ao episódio mais dramático da história brasileira levanta pelo menos duas hipóteses:

1. Os porteiros das redações de hoje já conhecem todos os antecedentes, bastidores e desdobramentos do golpe e estão com a curiosidade satisfeita;

2. O golpe de 1964 ainda é um tabu, zona interditada aos jornalistas fuçadores e inquietos.

A participação numa ilegalidade que se estendeu durante mais de duas décadas e ensanguentou o país como nenhum outro transfere para a imprensa a obrigação de desvendar lapsos, lacunas, imprecisões, dúvidas e mistérios.

Neste cinquentenário poucos se deram ao trabalho de acrescentar algo. Fica o próximo. Ou para 2018, quando o golpe do AI-5 completar os seus 50 anos.

 

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