Saturday, 21 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

A maledicência como estratégia

Os jornais de terça-feira (23/7) dão amplo espaço para a chegada do papa Francisco ao Rio de Janeiro. O discurso de saudação da presidente da República e a palavra do pontífice são destrinchados em busca de significados ocultos, e há grande destaque para a atitude serena do chefe da igreja católica durante o trajeto entre o aeroporto e a sede do governo do Rio, quando uma falha da segurança fez com que sua comitiva ficasse cercada pela multidão.

As coberturas se assemelham em quase tudo, mas deixam alguns vazios a serem preenchidos no relato sobre os protestos que acabaram em violência e prisões depois da solenidade oficial.

Curiosamente, os jornais paulistas O Estado de S.Paulo e Folha de S.Paulo deram mais destaque aos incidentes que o carioca O Globo, com reportagens de meia página nas quais explicam que os manifestantes tinham como tema principal a defesa do Estado laico e, como tem ocorrido nas últimas semanas, carregavam nas críticas ao governador Sérgio Cabral. Mas o leitor só vai formar um quadro mais ou menos coerente se ler os três principais diários de circulação nacional, com suas colunas de notas curtas, e observar alguns vídeos produzidos pela rede de jornalismo alternativo chamada de Mídia Ninja.

O Globo descreve o momento “exato” em que o tumulto teria eclodido, indicando a ação de um grupo bem articulado, que obedecia a um comando central: “Os distúrbios começaram sob as ordens de um manifestante de rosto encoberto por uma camisa. Ele recebeu um telefonema e ordenou que um grupo de mais de vinte jovens colocassem máscaras e toucas ninjas e iniciassem o ataque”, descreve o jornal carioca.

Uma nota na Folha torna pública a acusação de que a violência durante protestos no Rio seria comandada por milicianos, ex-policiais militares, ligados ao ex-governador Anthony Garotinho, que estariam agindo de forma organizada e misturados ao manifestantes.

Nas redes sociais digitais, destaque para registros de ativistas do Mídia Ninja, que teriam identificado como agente policial o homem que atirou o primeiro coquetel molotov contra o contingente da PM que protegia o Palácio Guanabara.

Esse conjunto de informações poderia ser mais bem explorado pelos jornais para ajudar o leitor a entender o contexto em que se misturam a mensagem de paz do pontífice a cenas de violência nas ruas.

Incomodando a imprensa

As transmissões abertas do Mídia Ninja mostraram que a manifestação começou no proverbial tom de bom humor e deboche, como costuma acontecer no Rio. Mulheres seminuas encenavam “confissões” de práticas condenadas pela doutrina católica, casais homossexuais se beijavam em frente a uma igreja, escandalizando peregrinos, e manifestantes cobravam informações sobre um morador da favela da Rocinha que está desaparecido desde o dia 14/7, quando foi preso e levado a uma delegacia.

Como tem ocorrido há semanas, o grupo de jornalistas independentes é a principal fonte de informações diretas dos protestos. As grandes emissoras de televisão, hostilizadas pelos manifestantes, só conseguem imagens tomadas de helicópteros ou do alto de edifícios, e eventualmente colocam repórteres no meio da multidão, munidos de telefones com câmeras, para fazer registros, mas eles têm dificuldade de descrever as cenas, para não correrem o risco de serem identificados.

O crescimento da audiência do Mídia Ninja,cujas transmissões são agora acompanhadas nas redações dos jornais, começa a chamar a atenção de autoridades e da mídia tradicional. Essa provavelmente é a razão pela qual, durante os incidentes no Rio, a polícia estava especialmente interessada em tirá-los de circulação. Filipe Peçanha e Felipe Assis, membros do núcleo fundador do grupo alternativo, foram detidos e acusados de incitar a violência.

Interessante observar como esse fenômeno de comunicação cresce e se consolida sob a estrutura orgânica das manifestações, transformando-se rapidamente em uma forma eficiente de mídia, sem editores nem hierarquia visível, ao ponto de servir de fonte para muitos jornalistas e ser considerada como uma ameaça pela polícia. Pode-se notar, também, que sua existência começa a perturbar a mídia tradicional.

Na edição do Globo de terça-feira (23), um artigo tenta vincular o Mídia Ninja ao Partido dos Trabalhadores, ao insinuar que a organização que lhe deu origem, o grupo de ativismo cultural denominado Fora do Eixo, seria “uma ferramenta de articulação político-partidária”.

Quando a imprensa apela para a maledicência, é porque se sente incomodada.