Um jovem está prestes a chegar em casa quando é abordado por outro jovem que, armado, lhe exige o celular e faz menção de lhe retirar a mochila. Logo depois, dispara e foge. O tiro atinge a cabeça do jovem assaltado diante do prédio gradeado que supostamente lhe garantiria segurança. O rapaz morre ao dar entrada no hospital.
O crime ocorreu na noite de uma quarta-feira (10/4), num bairro da Zona Leste de São Paulo, e provocou imediata repercussão pela aparente gratuidade do ato e porque o agressor era menor de idade e estava a três dias de completar 18 anos. Por isso, era previsível a nova onda a favor da redução da idade para a imputabilidade penal, desta vez provocada pelo governador de São Paulo. A mãe do rapaz assassinado declarou que se empenharia na aprovação da proposta, em nome do filho, cuja morte não poderia passar em vão.
Os jornais, pelo menos desta vez, não abraçaram a onda punitiva. Noticiaram a proposta oportunista do governador – oportunista porque sempre que há um crime de grande impacto é evidente o movimento de capitalizar apoios em torno de mais punição – mas também apresentaram o contraponto, com argumentos de criminalistas demonstrando a inutilidade de tal propósito.
Menores pobres e ricos
Mas havia muito mais a discutir, a partir do crime que chocou porque foi gravado pela câmera do prédio e teve as imagens repetidas à exaustão nas redes de TV.
“A redução da maioridade penal sempre ganha força no Congresso quando há um caso de apelo social”, publicou a Folha de S.Paulo, na sexta-feira (12/4). Na mesma página, o advogado Thiago Bottino argumentava que “sempre que há um crime envolvendo adolescentes, o tema da reforma do ECA [Estatuto da Criança e do Adolescente] vem à tona”.
Faltou dizer: sempre que há um crime envolvendo – melhor dizendo: cometido por – adolescentes pobres…
Porque há vários crimes cometidos por adolescentes ricos ou de classe média que provocam justa indignação mas jamais o apelo à redução da maioridade penal. O mais significativo, entre todos, foi o do assassinato do índio Galdino, em Brasília, em 1997, por um grupo de jovens, um deles menor de idade. Na época, apesar dos incisivos protestos contra a barbaridade do ato de atear fogo sobre um sujeito que dormia num abrigo de ônibus – e a rapaziada alegou pensar que se tratava de um mendigo, não de um índio, como se isso fosse atenuante –, ninguém pensou em modificar o ECA.
Impunidade?
O rapaz assassinado à porta de casa era estudante da Faculdade Cásper Líbero e sua morte provocou uma passeata que parou a Avenida Paulista no dia seguinte ao assassinato: seus colegas empunhavam cartazes pedindo, entre outras coisas, a “redução da maioridade penal” e o “fim da impunidade”.
Impunidade? Dados do Ministério da Justiça informam que o Brasil tinha, em julho do ano passado, quase 550 mil presos – o que, em números absolutos, significa o quarto lugar mundial, atrás de Estados Unidos, China e Rússia. Além disso, de acordo com o Departamento Penitenciário Nacional, esse número de presos é 66% maior do que a capacidade de abrigá-los.
O suposto “fim da impunidade” para os jovens infratores significaria jogá-los nesse sistema que nunca teve condição de cuidar da sua “clientela” de sempre – os pretos e brancos quase pretos de tão pobres maiores de idade. Não é casual que tantos juristas definam as prisões como “universidades do crime”. A rigor, independentemente da interminável e ociosa discussão sobre a capacidade de discernimento do jovem ao infringir a lei, seja nos atos mais banais como nos mais graves, quem defende a manutenção da imputabilidade penal aos 18 anos quer justamente evitar que um contingente inimaginável de jovens – pobres – venha a aumentar a superlotação desse sistema já falido.
Tampouco será casual que esse apelo à maior punição coincida com a cobertura do julgamento dos acusados pelo massacre do Carandiru, embora sempre possa haver quem considere que aquelas 111 mortes foram pouco, que talvez todos os presos devessem mesmo morrer.
Porém o “fim da impunidade” é apenas suposto porque o ECA prevê punição aos infratores, e são raríssimas as reportagens sobre o que significa ser recolhido a esse “sistema”. Por isso foi tão sugestivo, embora reduzido, o espaço que o Estado de S.Paulo deu a um ex-interno desse sistema, na edição de domingo (14/4). Dois dias antes, o mesmo jornal abria generoso espaço à família do jovem que assumiu o crime. Ali – a serem verdadeiros os depoimentos da mãe e da irmã – também se desmonta o eterno argumento da educação como forma de coibir práticas antissociais. Pois o rapaz, apesar de pobre, teve educação e era evangélico. Já segundo a Folha ele era um desgarrado, que mal parava em casa e roubava para comprar drogas.
Raciocinar sob emoção?
Seria importante saber, afinal de contas, que tipo de jovem era esse que acabou assassinando outro logo após lhe levar o celular.
Seja como for, esse tipo de gente só se torna notícia quando comete crimes chocantes ou quando se oferece para ilustrar reportagens edificantes sobre o apaziguamento de regiões conflituosas da periferia, como ocorre no Rio de Janeiro com a propaganda das UPPs e do “empreendedorismo” nascente nessas favelas, como se antes não houvesse relações sociais, afetivas e comerciais ali.
Seria importante informar como se dá o processo de “reeducação” – ou, talvez de “educação” – nas unidades da Fundação Casa. Mais ainda, seria importante abrir espaço para a discussão sobre as motivações de quem comete crimes: aí talvez pudéssemos começar a pensar que as questões são muito mais complexas do que poderíamos imaginar.
Mas, da mesma forma que não é possível legislar sob o impacto da emoção, tampouco é possível refletir diante de fatos como esse. Quem estará disposto a raciocinar diante das cenas exaustivamente repetidas na TV?
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Sylvia Debossan Moretzsohn é jornalista, professora da Universidade Federal Fluminense, autora de Repórter no volante. O papel dos motoristas de jornal na produção da notícia (Editora Três Estrelas, 2013) e Pensando contra os fatos. Jornalismo e cotidiano: do senso comum ao senso crítico (Editora Revan, 2007)