A discussão sobre a proposta de regulamentação da internet, que tem como relator o deputado Alessandro Molon (PT-RJ), ainda não ganhou o devido espaço nos jornais. Embora tenha na sua origem o DNA da Creative Commons, organização social nascida nos Estados Unidos para incentivar a inovação no ambiente digital baseada no compartilhamento de ideias, a proposta de criar uma “constituição” brasileira para o chamado ambiente virtual corre o risco de ser abduzida pelos interesses de grandes empresas e deixar em segundo plano a natureza da rede e os direitos dos usuários.
Uma das evidências de que os argumentos estão sofrendo um processo de reducionismo – o que é sempre um sinal de distorção em favor de uma das forças em litígio – é a constante comparação com exemplos do mundo físico.
A questão da cobrança ou não de tarifas diferenciadas para usuários comuns e clientes de grande porte leva representantes das operadoras de telefonia, por exemplo, a comparar o tráfego na rede mundial de computadores com o pedágio em estradas de asfalto: para essas corporações, uma motocicleta não deveria pagar o mesmo que uma carreta, segundo artigo de um de um de seus representantes publicado na edição de quarta-feira (26/12) no Globo.
Vida digital
Parece óbvio, mas não é. Empresas de telecomunicações, por sua própria natureza, operam com objetivos oligopolistas e precisam ser constantemente vigiadas pelos órgãos de controle da isonomia econômica. A frequência com que resistem a normas de defesa do consumidor e sua presença permanente entre os mais recorrentes objetos de queixas por mau atendimento aconselham a tomar com cautela suas ponderações.
No entanto, outros protagonistas desse cabo-de-guerra, como as grandes empresas de mídia, entram na discussão usando o discurso da necessidade de salvaguardar a democracia da rede como disfarce para a garantia de vantagens no futuro. Porém, a própria evolução da tecnologia tem feito com que uns e outros mudem de posição conforme se alteram as condições reais de funcionamento da rede.
O processo colaborativo para a construção das regras da internet no Brasil foi lançado oficialmente, pelo Ministério da Justiça, em outubro de 2009. De lá para cá, o próprio ambiente em que se processam as comunicações digitais mudou tanto que os analistas consideram ter sido inaugurada uma nova era na internet.
Aliás, mesmo expressões consolidadas como “cultura cibernética”, “conexão online” e “internet” vêm caindo em desuso, dada a nova natureza do mundo digital: antes as pessoas buscavam “acesso à internet” – hoje e cada vez mais, elas estão imersas no ambiente que ainda chamamos de virtual.
De maneira acelerada, também essa ideia de “virtualidade” perde sentido, na medida em que certas características da vida social digital passam a dominar as relações reais entre os indivíduos.
Uma boa pauta
Os problemas para a criação de um “marco civil” são muitos e de variadas origens. O principal deles é o fato de se tentar legislar sobre uma questão ainda em desenvolvimento, e que se transforma rapidamente, aos saltos, gerando sucessões de rupturas.
Como tratar de mutações na estrutura arcaica do Congresso?
A imensa maioria dos parlamentares que deverá aprovar a proposta final é composta de analfabetos digitais. Entre os parlamentares dotados de conhecimento razoável sobre o assunto, não será raro encontrar os que estão comprometidos com este ou aquele setor da economia com grande interesse no assunto, por conta dos financiamentos de campanha eleitoral e outras práticas menos explícitas de convencimento.
Se, de um lado, disputam o predomínio organizações poderosas no campo minado do Parlamento, de outro lado o assunto parece não importar muito aos grandes interessados.
É certo que os usuários, dispersos em suas individualidades, ainda não deram mostras de organização suficiente para influenciar na decisão. As muitas audiências públicas realizadas pelo Brasil afora desde o lançamento da proposta do “marco civil” atraíram microempreendedores, representantes das grandes empresas de comunicação e até delegados da Federação Brasileira de Bancos, mas ainda não se chegou a um modelo que satisfaça a todos os que se manifestaram.
O ponto central da discórdia parece ser a definição do que venha a ser a neutralidade da rede. Todos a defendem, mas a maioria dos protagonistas quer uma “neutralidade” a seu favor.
Uma reportagem que atualize o público sobre o estado desse debate, com o esclarecimento de todos os interesses envolvidos, é uma boa pauta para esses dias de pouca notícia.