O rescaldo das lembranças de 1964 nos jornais de circulação nacional tem como saldo principal a promessa dos comandantes das Forças Armadas de que vão finalmente concluir e entregar à Comissão Nacional da Verdade o resultado de investigações sobre a violência institucional implantada durante a ditadura. O conhecido espírito de corpo que mantém as casernas apartadas da vida civil certamente coloca em dúvida a possibilidade de que tudo venha a ser esclarecido, mas a mera concordância em submeter seus arquivos – ou o que resta deles – ao poder constitucional já é sinal de alguma modernidade nos quartéis.
A imprensa brasileira tem perseguido com seus próprios recursos essa fonte de informações sobre o que se passou nos porões da repressão, e o mais curioso é que o conjunto mais impactante de revelações veio da boca de um ex-oficial do Exército que estava ansioso por revelar suas proezas como torturador frio e assassino.
O coronel reformado Paulo Malhães quebrou a aliança de segredos dos militares, em depoimento à advogada Nadine Borges, da Comissão Estadual da Verdade do Rio de Janeiro, e ao jornalista Marcelo Auler, assessor da entidade, simplesmente porque encontrou alguém disposto a ouvi-lo.
Malhães se orgulha de seus feitos, não manifesta o mais tênue sinal de arrependimento e confirma o que era subentendido por outras evidências: seu comandante e, por sucessão lógica, o ditador de plantão, sabiam do que se passava nos locais onde suspeitos eram interrogados, alguns até a morte, e onde eram preparados os métodos para fazer desaparecer seus corpos. Alguns detalhes dessa prática só vieram a público porque o ex-oficial acredita que estava cumprindo uma missão. Seu caráter sádico e sua perversidade acabam traindo o pacto de silêncio das Forças Armadas.
Mas foi a persistência de alguns jornalistas que permitiu expor o fato de que a tortura e o assassinato de dissidentes eram parte da política de Estado. Destaque para o Globo, que resgata uma parcela de credibilidade ao revelar aquilo que em outros tempos sua Redação tratou de omitir.
A opinião envenenada
Outro lado da obscura história da ditadura que embruteceu o Brasil desde 1964 é trazido pela edição de quarta-feira (2/4) da Folha de S. Paulo, com uma reportagem feita numa das bibliotecas da Universidade do Texas, em Austin, com base numa entrevista concedida pelo ex-presidente João Goulart ao historiador americano John Foster Dulles, em 15 de novembro de 1967.
O depoimento, feito três anos e meio após o golpe que o derrubou e nove anos antes de sua morte, ocorrida em dezembro de 1976, mostra um homem sereno e lúcido, consciente de que o golpe foi tramado pelo governo dos Estados Unidos. O documento, segundo a interpretação do enviado especial Lucas Ferraz, esclarece que João Goulart nunca planejou um golpe de Estado e não tinha a menor simpatia pelo comunismo, ao contrário do que diziam os jornais da época em grandes manchetes. Ele tentava apenas promover reformas “a favor da independência, do desenvolvimento, do bem-estar e da justiça social”.
Jango entendia, na ocasião da entrevista, que o golpe havia ceifado a chance de o Brasil impulsionar o processo democrático na América Latina. Seu sonho de promover a justiça social foi provavelmente a matriz do movimento reacionário: como sempre, as forças conservadoras da sociedade brasileira se opunham a qualquer política que viesse a colocar sob risco seus privilégios e promover uma redução das desigualdades.As empresas jornalísticas que vieram posteriormente a dominar o cenário da mídia brasileira são justamente aquelas que atuaram como porta-vozes desses interesses oligárquicos.
O texto traz poucas revelações, porque a Folha provavelmente guarda a íntegra do documento, ou sua parte mais substancial, para a edição de domingo, mas é suficiente para destacar um elemento importante para a análise daqueles acontecimentos: a consciência que tinha João Goulart de que a imprensa havia cumprido um papel central na interrupção do processo democrático em abril de 1964. A “feroz oposição da imprensa contra o seu governo” provocou, segundo a reportagem, o “envenenamento da opinião pública”.
Alguma relação com o Brasil do século 21?