Tuesday, 23 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

Ainda não há uma revista gay brasileira

No texto ‘Em busca da normalidade, Sui Generis e o estilo de vida gay’, publicado e disponível no site da revista Gênero, Marcus Lima analisa várias edições da extinta revista dirigida ao público gay e, entre outras coisas, conclui:




‘Nas variadas `falas´ que identificamos nos artigos de Sui Generis, expressas nos editoriais, nas imagens dos ambientes freqüentados e produtos a serem consumidos, constatamos uma imagem `ideal´ de homossexual, quer seja, o gay bem resolvido psicologicamente, assumido publicamente e bem sucedido profissionalmente. (…)


O estilo de vida gay seria, ainda, prerrogativa dos homossexuais bem sucedidos. Embora não encontremos definições explícitas e precisas desse estilo gay que a revista difunde e racionaliza, pudemos, em nossa empiria, registrar algumas características dele. Vestir-se segundo padrões de requinte e contemporaneidade, o que implica roupas produzidas com tecidos e cores menos convencionais; adquirir conhecimento e ser exímio na profissão escolhida, visto que, dessa forma, não se daria brecha para o preconceito no ambiente de trabalho; ter relacionamentos saudáveis, que implica monogamia, sexo seguro e praticado entre gays, exclusivamente; exercitar o corpo nas academias de ginástica, de modo a construir um tipo físico que se oponha ao sujeito frágil e delicado produzido pela representação heterossexual e ‘dar pinta’, mesmo que apenas em `estado d´alma´.’


Indício das influências


Com o fim da revista Sui Generis, o público gay ficou praticamente apenas com a G Magazine, que prioriza o nu masculino e, nos últimos anos, na tentativa de conquistar mais uma parcela do público, passou a publicar artigos (a exemplo dos bons textos de João Silvério Trevisan e de outros colunistas que representam parcelas da comunidade gay, como os ursos, lésbicas e travestis, por exemplo) e algumas matérias sobre comportamento. Apesar disso, a G Magazine, devido à ênfase ao sexo, acaba também limitando a sua atuação e abrangência.


Por isso, a comunidade gay aguardava o lançamento de uma publicação, o que ocorreu em setembro. Junior, uma nova revista dirigida ao público gay do Brasil, foi criada pelo dono do site Mix Brasil, André Fischer. Depois de ler a primeira edição, nas bancas ao preço de 12 reais (possivelmente o maior preço de capa das revistas locais), passei a me perguntar: será que a revista é mesmo dirigida aos gays brasileiros? Tendo a pensar que não, pois a revista trata excessivamente de pessoas e manifestações culturais de outros países. Além disso, os brasileiros retratados pertencem a uma ínfima parcela da comunidade gay masculina, branca e bem sucedida financeiramente.


Fischer oferece, no editorial, um claro indício sobre as suas influências: a revista Out norte-americana e a francesa Têtu, ambas direcionadas ao público gay dos seus países.


Um pedido de perdão


Ou seja, ao ler (quer dizer, o mais apropriado seria ver, pois quase não há textos nas 116 páginas) a primeira edição de Junior, podemos concluir exatamente o que Marcus concluiu sobre a Sui Generis.


Em praticamente todos os textos existem referências ao fato da fonte freqüentar academias de ginástica, usar produtos para a pele, roupas de determinadas grifes e freqüentar determinadas festas. E mais: quase todas as fotos são de pessoas brancas, a começar pelo loiro da capa. A única exceção fica por conta de uma foto da campanha das cuecas Calvin Klein (a verdadeira cueca de todos os gays!), com o ator Djimon Hounsou. Ou seja, negro não é fonte, mas serve como objeto de fetiche. Coisa velha! Vai ver que não existem gays negros e pobres no Brasil.


Para contrabalançar um pouco a ênfase na questão do corpo, um artigo do antropólogo francês Stéphane Malysse parece servir mais como um pedido de perdão pela revista endeusar o culto a determinado tipo de corpo. No entanto, a ênfase contrária é tão grande que o texto não alcança tal propósito, caso ele exista.


Carão é a cara da Junior


Além disso, jornalisticamente, a revista é muito ruim. Não há nenhum texto que sequer se aproxime de uma reportagem. As oito entrevistas em estilo pingue-pongue seguem o mesmo nível de superficialidade dos demais textos. O ator Carlos Casagrande, que representou um gay (?) na novela Paraíso Tropical, é elogiado. Ou seja, é exatamente dentro da heteronormatividade que a revista, que se diz gay, trabalha. É a total vitória do discurso heterossexual, como tenho apontado em minhas análises sobre os personagens gays nas telenovelas brasileiras (ver aqui).


A diferença é que aqui vemos, novamente, o discurso da heteronormatividade (muitas vezes, homofóbico) sendo reproduzido também por meios de comunicação dirigidos ao público gay. E, como se não bastasse, o texto que se apresenta como uma ‘reportagem’ ensina os gays a fazer o conhecido carão (segundo o dicionário Aurélia, citado na revista, carão significa ‘pose, esnobação, presunção’). Ora, o carão é a cara da Junior.


Conclusão: a rigor, ainda não temos uma revista gay brasileira ou, pelo menos, ainda não temos um meio de comunicação que contemple a diversidade de nossa comunidade gay. Até quando?

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Professor universitário e pesquisador do CULT (Centro de Estudos Multidisciplinares em Cultura, da Facom/UFBA)