Wednesday, 25 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

Alhos, bugalhos e contas tortas

 

Por um breve instante pensei que o jornal O Globo tinha guinado 180º e passado a fazer campanha eleitoral petista: manchete e página inteira na edição de segunda-feira (23/7) gabavam que o “PT pagou o dobro da inflação a servidores”. Em letras menores, ainda na capa, ficamos sabendo que “desde que o PT chegou ao Palácio do Planalto, em 2003, os funcionários do governo federal passaram a custar mais do que o dobro ao país”. E que a “despesa média por servidor cresceu mais de 120% entre 2003 e 2011, contra inflação de 52% no período”.

Puxa, que pena… não era elogio, era malhação (no sentido arcaico do termo). E que “dobro” de 46% (acima da inflação) é esse? “Dobro”, como?

Na página 3, uma extensa reportagem misturou percentuais de aumento nominal com aumento real, repetindo muitas das mancadas da edição de sábado (14/7), quando o jornal afirmava que o governo tinha cedido e aumentara o salário dos professores em até 48%. Tive que passar o fim de semana explicando aos vizinhos, parentes e ao pessoal das televendas que ainda não tinha sido desta vez que enricara. Feitas as contas, meu prejuízo em julho de 2015 estaria em mais de 3%, mesmo considerando a inflaçãozinha que o governo “estima”, em torno de 5,7% ao ano (ver, neste Observatório, “O jornalismo cego às armadilhas do discurso oficial”).

Cálculo suspeito

Para os que tem justificada impaciência em ler números e fazer contas enjoadas, o jornal colocou, no centro da página, uma série de gráficos mostrando a evolução da despesa anual de pessoal (ativos e inativos da União por poder, do quantitativo de servidores ativos da União, por poder, e da despesa média com servidores ativos por poder – os poderes são Executivo, Judiciário e Legislativo). E aí despontam os problemas:

>> A evolução dos números (despesa anual de pessoal, quantitativos de servidores ativos e despesa média com servidores) começa em 1995, na escala horizontal dos gráficos. E esta escala não evolui em intervalos iguais, como manda a boa regra: começa em 1995, vai direto para 2002, depois 2003, salta para 2009 e termina em 2012 (em despesa anual e despesa média, e em 2011 para o quantitativo de servidores, aliás com um asterisco dizendo que é “o último dado disponível”).

Ou seja, o leitor que não percebe isso vai ter uma ideia distorcida de quanto e como evoluiu. Assim, está se comparando medidas em momentos diferentes e desencontrados. Outra coisa: as cifras para 2012 são previstas? Ou são dados apurados até junho?

>> Curiosamente, O Globo utiliza os dados de 2003-2012 (Lula, dois mandatos + Dilma, meio mandato), mas compara com o IPCA do período 2004-2011. Ora, como 2012 ainda não acabou (mas, apesar das previsões maias, deve acabar) e o ano de 2003, que teve um IPCA de 9,3%, não é considerado, fica uma coisa meio torta, cheirando a maracutaia estatística.

Ou seja, expurgaram quase 10% do IPCA do período. Ou não? Cem reais em janeiro de 2003 são R$ 167,00 em final de 2011, assim como R$ 100,00 em janeiro de 2004 são R$ 153,00 no final de 2011 (tudo corrigido pelo IPCA). Então, que bagunça!

>> A unidade da despesa anual de pessoal e da medida da despesa média com servidores ativos está errada. No texto está R$ 64,7 milhões (não seriam bilhões?) em 2003, e R$ 152,5 milhões (não seriam bilhões?) em 2011. Ou, então, eu recebo em média 7 milhões de reais no ano e só agora fiquei sabendo. Outra coisa torta: a despesa anual inclui ativos e aposentados. O quantitativo de servidores é só de ativos. Daí que o cálculo da média não dá certo nem por reza braba.

Contas tortas

Agora, vamos endireitar os números. No começo dos anos FHC (1995), os funcionários da União eram 951 mil e o gasto total com este contingente (incluindo aposentados) era de R$ 31 bilhões, cerca de 4,5% do PIB. Aí, entrou em cena o professor Bresser Pereira, que fez a “Reforma do Estado” e, ao final de 2002, o número de servidores baixara para 809 mil (15% a menos), mas “custando” R$ 59 bilhões (quase o dobro nominal de 1995).

Nas universidades, cresceu exponencialmente o número de professores substitutos e de servidores terceirizados. Estava um caos, e os governos Lula fizeram a recomposição deste quadro, com pessoal muito mais qualificado e valorizado. Segundo O Globo, éramos, ao final de 2011, 984 mil ativos e “custamos” R$ 152 bilhões (ativos e inativos) – o que representa 4,6% do PIB, quase o mesmo de 1995. Que coisa impressionante! A contabilidade e a matemática financeira têm suas dores e delícias.

O que a reportagem cheia de desvãos perigosos não conta é que, pelo menos no caso dos docentes das universidades federais, este aumento de gastos (?) é mais do que justificado – e deveria ser muito maior. As instituições federais de ensino superior passam, desde meados da década passada, por um período de imensas transformações. Passamos de 45 para 59 universidades federais; todas as universidades que entraram no Reuni (o plano de expansão das federais) abriram mais de 120 campi em todo o Brasil. O número de alunos mais que dobrou, e são previstos mais 680 mil a partir de 2008, quando eram 1,5 milhão. A titulação dos docentes (que influi diretamente nos salários pagos) saiu de 36% de doutores em 2001 para 50% em 2010, e hoje esse número deve estar próximo de 60%.

A previsão para o Reuni era de contratação de 13 mil docentes; apenas entre meados de 2011 a março de 2012 foram autorizados concursos para 6.059 docentes e servidores das universidades. A quase totalidade dos novos docentes entram nas instituições já com a titulação de doutor e DE (dedicação exclusiva) – esta é uma condição exigida pelo próprio MEC. Só por milagre delfiniano a conta não aumenta, no mínimo, na mesma proporção.

Mas tudo isso custa muito dinheiro, é claro. As universidades, incentivadas pelo governo, fizeram sua expansão, mas agora que o PIB caiu (e com o Mantega pra baixo – gênio, Zé Simão!) ficam os nossos dois patrões (MEC e Ministério do Planejamento) na maior enrolation, fingindo continhas tortas, misturando alhos com bugalhos e arrumando guarida até em jornais importantes, como O Globo. E, como brincavam os petistas na oposição, anos atrás: “E o salário, ó…”

Em tempo – Você sabia que o MEC tem uma página chamada “Seja um Professor”? Acredite e confira aqui.

Leia também

A manipulação dos números – Sylvia Debossan Moretzsohn

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[Antonio Fernando Beraldo é engenheiro e professor do Departamento de Estatística da Universidade Federal de Juiz de Fora]