Monday, 25 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Apuração em zona de conflito

A profissão de correspondente de guerra é um desafio e uma luta constante pela sobrevivência. Diante do perigo, a maioria das pessoas foge. Os correspondentes correm em direção a ele. Estes jornalistas, cinegrafistas e fotógrafos arriscam a vida para reportar os fatos. Nadando contra a corrente, revelam ao mundo a dimensão maior da violência, do medo e do horror.

Há mais de vinte anos a carioca Cristiana Mesquita vive essa rotina – ou melhor, vive essa falta de rotina. Já cobriu quatro grandes guerras e diversos conflitos isolados. Esteve na Bósnia, Kosovo, Afeganistão e, mais recentemente, passou quatro meses no Iraque. Cobriu guerrilhas na América Central e no Haiti, onde esteve em 1994 e de onde acaba de voltar.

Mesmo com toda essa experiência, Cristiana já sofreu dificuldades por não ter diploma de jornalismo. Durante quinze anos, ela trabalhou como correspondente para a América Latina na agência internacional de notícias WTN (Worldwide Television News). Depois que a agência foi vendida para a AP (Associated Press), Cristiana ficou desempregada. Tentou emprego em empresas brasileiras mas não conseguiu ser contratada pela falta do diploma. ‘Foi um período difícil’, diz ela. ‘Ainda bem que nenhuma das grandes empresas estrangeiras fazem essa exigência.’ Assim ela conseguiu trabalhar como free lancer fora do Brasil. Há dois anos, foi contratada pela AP.

Ela começou a carreira como assistente de câmera, em 1977. Havia acabado de casar com o também jornalista Antônio Brasil – à época cinegrafista da Rede Globo – e morava em Londres. Lá trabalhou como free lancer para correspondentes de várias redes de TV e depois foi contratada pelo escritório da Globo. Chegou a pensar em se tornar cinegrafista, mas logo desistiu: ‘Com a chegada do vídeo e suas câmeras grandes e pesadas achei mais apropriado passar para a área de produção’, lembra.

Na entrevista que se segue, Cristiana fala sobre a fascinante – e perigosa – vida de correspondente e sobre sua experiência na guerra do Iraque, onde passou quatro meses e foi a única jornalista brasileira embedded.

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Qual é a maior dificuldade do trabalho de correspondente de guerra? E a maior recompensa?

Cristiana Mesquita – A maior dificuldade é encontrar a verdade – ou pelo menos algo bem próximo da verdade – no meio do turbilhão de informações desencontradas, da propaganda e, principalmente, das minhas próprias opiniões e preconceitos. A maior recompensa é aprender um pouco mais sobre os seres humanos e sobre mim mesma. A grana também não é ruim.

Em um artigo publicado no Observatório [remissão abaixo], você criticou o engajamento da correspondente da CNN Christianne Amanpour – que na época havia cobrado do presidente Bill Clinton a intervenção do exército americano na Bósnia. Durante uma guerra, como é possível o jornalista manter-se neutro?

C.M. – Estava me referindo não só a Christianne, mas a quase todos os jornalistas que cobriram a guerra da Bósnia baseados exclusivamente em Sarajevo. Era muito difícil para quem estava vivendo o dia-a-dia da cidade não ficar do lado dos bósnios. Talvez seja impossível se manter neutro numa guerra, mas o objetivo principal do jornalista é ser o observador dos fatos. Para isso ele tem que buscar a neutralidade, senão tudo vai ficar embaçado por suas próprias crenças. Isso não significa que não há lugar para um jornalismo engajado, mas aí é outro tipo de jornalismo. Como tenho mais dúvidas do que certezas prefiro me ater aos fatos.

Em zonas de conflito, os correspondentes estão expostos aos riscos. Para se proteger, muitos andam com coletes a prova de balas e seguranças. Há notícias de que, no Iraque, alguns jornalistas chegaram ao ponto de andar armados. Que precauções você costuma tomar? Qual sua opinião sobre jornalistas que carregam armas?

C.M. – Antes precisamos esclarecer que nunca vi ou soube de jornalistas carregando armas. O que está acontecendo agora é que algumas empresas optaram por seguranças armados para proteger suas equipes no Iraque. Particularmente sou contra a utilização de seguranças armados – e felizmente a AP também. Na realidade sou contra até a presença de seguranças. Cria um conflito de interesses, já que o meu trabalho é conseguir a matéria e o deles é se certificar de que não vou estar em perigo; esses dois caminhos raramente se cruzam. Além disso, eles não têm o mesmo treinamento que eu, se comportam diferente e têm outras opiniões e métodos para sair de algumas das enrascadas que a gente se mete de vez em quando. É mais ou menos como misturar chiclete com banana.

O problema é que os seguranças são uma exigência das companhias de seguro e, por mais que eu queira, não vão desaparecer. Com o tempo eles vão ter que aprender um pouco mais sobre o nosso trabalho e nós sobre o deles. Quanto a minha opinião sobre seguranças que andam armados, sou radicalmente contra. Repito aqui o que disse ao meu chefe quando me fizeram essa proposta: há 20 anos estou me preparando para a possibilidade de morrer fazendo esse trabalho, mas nada nesse mundo vai me convencer a matar por ele. Mesmo que seja o segurança puxando o gatilho ele o vai fazer para me defender – o que, no final das contas, é o mesmo que eu puxar o gatilho. Isso sem falar na questão ética e na mudança que isso significa no status dos jornalistas numa guerra. Somos civis e como civis não podemos estar armados.

Durante a guerra do Iraque, você passou um tempo ‘embutida’ (embedded) nas tropas de ocupação. Como foi esta experiência?

C.M. – Tive a oportunidade de conviver com os soldados e conhecer seus medos e dúvidas. Me deu uma outra perspectiva. Também permitiu que eu cobrisse algumas ações que de outra maneira não teria sequer conhecimento. Se a empresa só tem um repórter no Iraque e ele está ‘embutido’ vai ter uma cobertura muito ruim e parcial da história; mas se tem vários repórteres e alguns deles estão ‘embutidos’ (como era o caso da AP e de outras agências) vai ter uma cobertura muito mais rica e completa.

Um ano após a guerra, o Iraque vive uma situação de violência e caos. Com sua experiência e com base no que apreendeu durante os quatro meses em que esteve no país, o que acredita que irá acontecer daqui para frente?

C.M. – Acho que enquanto as tropas de ocupação estiverem por lá a situação vai continuar péssima. Tudo vai depender da transferência de poder. Uma vez que o Iraque estabeleça seu próprio governo e que as tropas se retirem, não creio que vá haver motivo para ataques. É preciso entender que os insurgentes não são necessariamente gente pró-Saddam Hussein. Eles são, principalmente, contra a ocupação. Agora, como se vai estabelecer o equilíbrio de poder no Iraque com as questões entre sunitas e xiitas, e que tipo de investimentos vão receber para botar o país funcionando novamente… Bem, isso eu teria que olhar na minha bola de cristal que, infelizmente, está quebrada.

Pretende voltar para o Iraque?

C.M. – É claro que sim. Quero estar por lá para o 30 de junho, que é a data da transferência de poder.