Wednesday, 01 de May de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1285

As bases do novo coronelismo eletrônico

Outorgar e renovar concessões de rádio e televisão era um poder exclusivo do
Executivo até 1988. Uma das inovações da nova Constituição foi exatamente
estender esse poder ao Congresso Nacional, nos termos do Parágrafo 1º do Artigo
223. Tendo em vista que as concessões tinham uma longa história de servir como
‘moeda de troca’ do Poder Executivo no jogo político, o fato de deputados e
senadores terem de referendar as outorgas e as renovações foi considerado um
importante avanço no sentido da democratização das comunicações no Brasil.


Por outro lado, a nova prerrogativa conferiu diretamente a deputados e
senadores uma parcela importante de poder num campo de seu interesse direto: o
controle das instituições de mídia, que nas sociedades contemporâneas têm a
capacidade de definir o que é público – vale dizer, de definir o espaço de
realização da própria política.


A Constituição de 1988, contudo, também proibiu que deputados e senadores
mantenham contrato ou exerçam cargos, função ou emprego remunerado em empresas
concessionárias de serviço público (letras a. e b. do item I do Artigo 54).
Restrição semelhante já existia no Código Brasileiro de Telecomunicações (CBT,
Lei nº 4117/62) desde 1962, determinando que aquele que estiver em gozo de
imunidade parlamentar não pode exercer a função de diretor ou gerente de empresa
concessionária de rádio ou televisão (Parágrafo único do Artigo 38).


Há, no entanto, indicações de que essas normas legais não têm sido cumpridas
e que, na prática, tenha se frustrado o sentimento inicial de avanço
democrático. Um número expressivo de deputados e senadores, nas diferentes
legislaturas desde 1988, é concessionário e continua a exercer cargos e/ou
funções nas suas próprias concessões de rádio e televisão. É o que revela uma
pesquisa recém-concluída pelo Instituto para o Desenvolvimento do Jornalismo
(Projor).


Mais do que isso: deputados e senadores concessionários de rádio e televisão
têm participado ativamente nos trabalhos da Comissão de Ciência, Tecnologia,
Comunicação e Informática (CCTCI), na Câmara dos Deputados, e da Comissão de
Educação, no Senado Federal, instâncias decisivas não só na tramitação dos
processos de renovação e de homologação das novas concessões, mas também na
aprovação de qualquer legislação relativa à radiodifusão.


Neste caso, além da Constituição e do CBT, descumpre-se o Parágrafo 6º do
Artigo 180 do Regimento Interno da Câmara dos Deputados e o Artigo 306 do
Regimento Interno do Senado Federal, cujas redações são semelhantes e determinam
que:




‘Tratando-se de causa própria ou de assunto em que tenha interesse
individual, deverá o deputado dar-se por impedido e fazer comunicação nesse
sentido à Mesa, sendo seu voto considerado em branco, para efeito de
quorum’.


Registre-se ainda que a tramitação dos processos tem sido extremamente lenta
– há processos que demoram oito anos! – e que, até hoje, não se tem notícia de
qualquer pedido de outorga ou renovação que não tenha sido aprovado pelo
Congresso Nacional.


Alteração societária


A CCTCI da Câmara dos Deputados é a porta de entrada dos
processos no Congresso Nacional e certamente um ponto de partida adequado para
quem busca a compreensão de como funcionam a outorga e a renovação de concessões
de rádio e televisão no país.


Uma das mais difíceis tarefas que os estudiosos da radiodifusão encontram é
identificar os verdadeiros controladores das empresas concessionárias de rádio e
televisão no Brasil. Até novembro de 2003, o Ministério das Comunicações sequer
disponibilizava para consulta pública o cadastro de concessionários de rádio e
televisão. Agora, disponível em arquivo PDF na
internet
, o cadastro oficial é, por razões diversas, uma referência de
pesquisa que deve ser utilizada com cautela.


Recentemente, tanto o ex-ministro Eunício Oliveira como o
ex-secretário-executivo Paulo Lustosa, do Ministério das Comunicações (MiniCom),
tiveram que dar explicações públicas de vez que, pelo cadastro do MiniCom, ambos
seriam concessionários de emissoras de rádio no Ceará, o que contraria
frontalmente a lei. Eles informaram que venderam suas concessões há cerca de
cinco anos e que a informação ainda não havia sido atualizada no cadastro
oficial (cf. Elvira Lobato, ‘Cadastro de Rádio e TV embaraça ministro e
secretário-executivo’, Folha de S.Paulo, 3/3/05, página A-11).


Os verdadeiros controladores das concessões têm recorrido a vários
expedientes para proteger sua identidade. Nomes de parentes e ‘laranjas’ são
recursos comuns não só para esconder o patrimônio como para fugir das normas
restritivas aplicáveis a deputados e senadores – e também daquelas que limitam a
participação societária de ‘entidades’ de radiodifusão a cinco concessões em VHF
em nível nacional e a duas em UHF, em nível regional (Artigo 12 do Decreto
236/67).


Um exemplo recente, com grande repercussão, envolve o deputado federal
Roberto Jefferson (PTB-RJ). Atribui-se a ele o real controle de duas emissoras
de rádio no interior fluminense que, no cadastro oficial do MiniCom, aparecem em
nome de dois concessionários, sendo que um deles declara sequer ter conhecimento
de que é sócio (cf. Nelito Fernandes, ‘E apareceu um laranja’, Época,
edição 368, 6/6/05).


Dessa forma, ao utilizar os dados oficiais do MiniCom, um pesquisador sempre
correrá o risco de não estar trabalhando com os nomes dos verdadeiros
controladores das concessões de rádio e televisão no país e, portanto, desvelar
apenas uma parte da realidade. Uma alternativa seria verificar nas Juntas
Comerciais locais, caso a caso, os nomes dos concessionários das mais de 4.000
emissoras de rádio e televisão existentes no país. Mesmo assim os nomes dos
concessionários não seriam inteiramente confiáveis, de vez que as Juntas
Comerciais são obrigadas por lei a só fazerem alteração societária em seus
registros com a devida aprovação do MiniCom. Resta o chamado ‘jornalismo
investigativo’, embora, muitas vezes, se utilize de métodos controvertidos para
obter as informações que busca.


Maioria folgada


Em 2003, os nomes de 16 (dezesseis) deputados membros da CCTCI aparecem no
cadastro do MiniCom como sócios e/ou diretores de 37 concessionárias – 31
emissoras de rádio e 6 de televisão – inclusive o próprio presidente da
Comissão, deputado Corauci Sobrinho (PFL-SP). Seis desses deputados eram do PFL,
três do PL, dois do PP, dois do PPS, um do PSL, um do PSDB e um do PTB.


Se considerarmos que a CCTCI de 2003 tinha 51 membros titulares e que,
portanto, seu quórum mínimo de votação era de 26 deputados, conclui-se que, em
tese, os 16 deputados concessionários poderiam – em situações de quórum mínimo –
constituir a maioria dos votantes aprovando ou rejeitando qualquer proposição.


Registre-se que, na Câmara dos Deputados, o número de membros das comissões
permanentes não é fixo. Ele é estabelecido por ato da Mesa Diretora no início da
primeira e da terceira sessões legislativas de cada legislatura (cf. Artigo 25
do Regimento Interno).


Já em 2004, os nomes de 15 (quinze) deputados membros da CCTCI – nove deles
também membros da CCTCI em 2003 – aparecem no cadastro do MiniCom como sócios
e/ou diretores de 26 concessionárias – 26 emissoras de rádio e 3 de televisão.
Cinco desses deputados eram do PFL, três do PMDB, três do PL, um do PSDB, um do
PPS, um do PP e um do PTB.


A CCTCI tinha apenas 33 membros titulares em 2004 e, portanto, um quórum
mínimo de votação de 17 deputados. A bancada de concessionários tinha, portanto,
folgada maioria nessas condições e poderia, em tese, aprovar ou rejeitar
qualquer proposição em tramitação.


Propriedade cruzada


O cruzamento da relação dos deputados que votaram em pelo menos uma das
reuniões da CCTCI, em 2003 e 2004, com a relação de sócios e diretores das novas
outorgas e renovações aprovadas, mostrou que o deputado Corauci Sobrinho
(PFL-SP), então presidente da Comissão, e o deputado Nelson Proença (PPS-RS),
membro titular, participaram e votaram favoravelmente nas reuniões em que foram
apreciadas e aprovadas as renovações das concessões das emissoras de rádio –
Rádio Renascença OM de Ribeirão Preto, SP e Emissoras Reunidas OM de Alegrete,
RS.


O mais revelador, todavia, é que os referidos deputados aparecem nos
processos que tramitaram na Câmara dos Deputados – eles próprios – como sócios
das respectivas emissoras de Ribeirão Preto e Alegrete cujas renovações foram
aprovadas.


Este é um forte indício de que a Constituição, o CBT e o Regimento Interno da
Câmara dos Deputados estão sendo desrespeitados.


Uma das conseqüências dessa prática é, sem dúvida, a perpetuação do velho
coronelismo na política brasileira, só que agora travestido de coronelismo
eletrônico. Uma grave distorção que se junta a outras tantas – como a
propriedade cruzada – e contribui para perpetuar a concentração exacerbada da
mídia no Brasil.

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Pesquisador sênior do Núcleo de Estudos sobre Mídia e Política (NEMP) da Universidade de Brasília e autor, entre outros, de Mídia: Teoria e Política (Editora Fundação Perseu Abramo, 2ª ed., 2004)