Nesses tempos de preparação da 1ª Conferência Nacional de Comunicação, uma das questões recorrentes é: o que deve ser feito para ‘democratizar as comunicações’? Boa pergunta, sem dúvida. Na verdade, essa é a questão síntese de todos os muitos e difíceis aspectos envolvidos na problemática geral do setor.
‘Democratizar as comunicações’ tem sido o principal paradigma conceitual, uma espécie de bandeira a orientar boa parte dos segmentos organizados da sociedade civil comprometidos com o avanço na área de comunicação. E não só no Brasil. Todavia, uma das falácias desta bandeira é que ela pressupõe a possibilidade de que a grande mídia dominante, privada e comercial, seria passível de ser democratizada. Vale dizer, em termos da teoria liberal da liberdade de imprensa, trazer para dentro de si mesma, ‘o mercado livre de idéias’ (the market place of ideas) – representativo do conjunto da sociedade, isto é, plural e diverso.
Seria este pressuposto realizável?
Retrabalhando a teoria liberal
Há mais de 50 anos, isto é, pelo menos desde a Hutchins Commission (EUA, 1942-1947), a teoria liberal foi ‘retrabalhada’ e passou a se apoiar em três idéias centrais: pluralismo interno, responsabilidade social e profissionalismo. Esse ‘retrabalhar’ decorreu da impossibilidade de se prosseguir sustentando o discurso do ‘market place of ideas’ – semelhante ao mercado ‘autocontrolado’ de Adam Smith – em face do avanço real da concentração (oligopolização) da mídia e da formação de redes regionais e nacionais de rádio e televisão.
A solução encontrada, porém, esbarra em dificuldades incontornáveis identificadas pelo desenvolvimento da pesquisa na área – sobretudo em relação aos mitos da imparcialidade e da objetividade jornalística e da independência dos conglomerados de mídia – e também se torna inviável em sociedades, como a Inglaterra, onde existe uma tradição historicamente consolidada de imprensa partidária.
Tudo isso trouxe de volta o ideário do ‘market place of ideas’, agora complementarmente ao pluralismo interno, à responsabilidade social e ao profissionalismo, e pela intervenção do Estado por intermédio de políticas públicas para garantir a concorrência das empresas de mídia (a não oligopolização) no mercado de idéias.
Além das dificuldades discursivas que a necessidade de intervenção do Estado cria para a teoria liberal, os próprios fatos têm revelado, sem margem a dúvidas, que nem um nem outro caminho tem garantido o ‘market place of ideas’.
Complementaridade dos sistemas
Uma variante dessas possibilidades foi contemplada na Constituição de 1988: trata-se da complementaridade dos sistemas privado, público e estatal de radiodifusão (Artigo 223).
Em função de opções feitas ainda na década de 1930, temos no Brasil um sistema de radiodifusão predominantemente privado. A Constituição, no entanto, determina a busca do equilíbrio entre os sistemas como forma de democratizar as comunicações: a criação da Empresa Brasil de Comunicação (EBC), em 2007, caminha nesta direção.
Outra alternativa seria o apoio à criação e consolidação de sistemas privados não comerciais, isto é, associações sem fins lucrativos, cooperativas ou fundações. Aqui as rádios e TVs comunitárias são exemplos em curso.
Re-enquadrando a ‘democratização’ das comunicações
Há, no entanto, uma inflexão conceitual que precisa ser feita. Devemos re-enquadrar toda a discussão da democratização das comunicações em torno do conceito de ‘direito à comunicação’. É preciso que a mídia seja entendida como um poder e a comunicação como um direito que compreenda não só a liberdade de expressão como os direitos à informação e ao conhecimento. Um direito tão fundamental como a educação e/ou a saúde, por exemplo.
A construção desse direito não é nova. Sua primeira formulação já tem quase 40 anos. Também não é novo que entidades e movimentos sociais que lutam pela democratização da comunicação no Brasil inscrevam esse direito – direta ou indiretamente – entre os eixos principais de seus programas de ação.
São muitos, no entanto, os obstáculos à sua consolidação, exatamente porque o direito à comunicação abre perspectivas imensas do ponto de vista de garantias ao cidadão, inclusive já praticadas em outras democracias liberais, das quais ainda estamos muito distantes: o direito de resposta como interesse difuso e o direito de antena são apenas dois exemplos.
O direito à comunicação não logrou ainda o status de direito positivado nem mesmo em nível dos organismos multilaterais que têm a capacidade de provocar o reconhecimento internacional do conceito – como, por exemplo, a Unesco. Esse fato faz com que, simultaneamente à articulação política de ações específicas, desenvolva-se também a luta pelo reconhecimento formal do direito.
Existem ainda históricas e poderosas resistências ao conceito, exatamente pelo poder que ele tem de abarcar um imenso leque de reivindicações e bandeiras em relação à democratização da comunicação. Mas, não há dúvida, esse é o caminho.
O que fazer?
Enquanto se segue na construção do direito à comunicação, há de se tentar que o ‘market place of ideas’ funcione no Brasil – sem ilusões.
Democratizar a comunicação passa a ser, portanto, garantir a circulação da diversidade e da pluralidade de idéias existentes na sociedade, isto é, a universalidade da liberdade de expressão individual. Essa garantia tem que ser buscada tanto ‘externamente’ – por meio da regulação do mercado (sem propriedade cruzada e sem oligopólios; priorizando a complementaridade dos sistemas público, privado e estatal) – quanto ‘internamente’ à mídia – cobrando o cumprimento dos manuais de Redação que prometem (mas não praticam) a imparcialidade e a objetividade jornalística.
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Pesquisador sênior do Núcleo de Estudos sobre Mídia e Política (NEMP) da Universidade de Brasília e autor, entre outros, de Diálogos da Perplexidade – reflexões críticas sobre a mídia, com Bernardo Kucinski (Editora Fundação Perseu Abramo, 2009)