“Este é um tema para ser levado a todas as famílias, é mais próximo de nós do que parece. A gente tem de sacudir a sociedade”, afirmou o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso à imprensa em Maio de 2011, antes da estreia do documentário Quebrando o tabu, no qual assume o comando de uma cruzada pela descriminalização da maconha.
O sociólogo foi ao Fantástico da TV Globo, deu entrevistas a rodo, foi ouvido pelos principais veículos, seu artigo no Globo e Estadão foi destacado. A provocação caiu no vazio tão logo deixou de ser novidade: uma sociedade organicamente conservadora e dogmática como a brasileira abre-se raramente, exceto quando mídia se arrisca a motivá-la para avanços.
Na quinta-feira (1/8), a Câmara dos Deputados do Uruguai aprovou um projeto do presidente José “Pepe” Mujica legalizando a produção, venda e consumo da cannabis no país. A votação foi apertada, a votação no Senado será mais confortável, preveem os analistas políticos.
No dia seguinte, apenas a Folha registrou a histórica decisão na primeira página, o Estadão chutou a notícia para uma página interna imaginando que confrontaria a pregação do papa Francisco contra os “mercadores da morte”. Errou: o alvo do governo uruguaio é o mesmo do pontífice – acabar com o narcotráfico. Só não aposta na repressão como recurso único.
Alternativas à mostra
O Globo tentou desmoralizar a iniciativa juntando ao fato o factoide de que o país vizinho pretende partir para o controle do consumo do álcool. O Uruguai tem o maior índice per capita de consumo de uísque, aparentemente superior ao da Escócia, o governo prefere trocar uma bebida importada com altíssimo teor alcoólico (entre 40 e 50%) por outra, nacional, muito menos tóxica e até recomendada por médicos quando usada com moderação. O vinho uruguaio, tal como o argentino e chileno, é um dos mais apreciados pelos conhecedores. Mujica jamais prejudicaria os vinicultores, são agricultores como ele.
A despenalização da erva no Uruguai não estimulará o seu consumo. O cadastro de usuários a ser implantado certamente irá desencorajar o uso ostensivo e abusivo. No médio prazo, o país tem todas as condições de enfraquecer o crime organizado.
Nenhum dos grandes jornais ouviu o ex-presidente FHC, hoje reconhecido internacionalmente. O Estadão preferiu entrevistar o ex-presidente Julio Maria Sanguinetti, conservador, evidentemente contrário a qualquer proposta do visionário e pragmático socialista “Pepe” Mujica.
O temor de confrontar as lideranças católicas recentemente revigoradas pela visita papal foi maior do que a vontade de favorecer a corajosa iniciativa de FHC que, em 1985, perdeu a eleição para a prefeitura paulistana porque se espalhou solertemente que era ateu.
O assunto evaporou, o projeto uruguaio foi engavetado por nossa mídia. O debate poderia render, sobretudo em tempos de mudança e véspera de nova temporada eleitoral. O modelo uruguaio dificilmente seria transplantado para o Brasil: o país é pequeno, altamente instruído e com um grau de corrupção muito inferior ao nosso. Mas a experiência pode suscitar alternativas. Acontece que neste início de agosto, o Espírito de Junho foi para as calendas. A sociedade não foi sacudida como pretendia FHC.
Oremos para que os Ninja produzam este milagre.
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