Poucas entrevistas de profissionais de jornais são tão lúcidas quanto a concedida à Folha de S.Paulo na segunda-feira (11/7) por Juan Luis Cebrián, fundador do jornal espanhol El País e presidente do Grupo Prisa (ver “Google e Facebook são os concorrentes dos jornais”).
Ele encadeou duas frases relevantes. A primeira: “O competidor da Folha não é o Estado de S.Paulo, é o Google, o Facebook, estes são nossos competidores reais”. E a segunda: “E não queremos admitir porque não sabemos como competir com eles”.
Ambas denotam clareza de sentido raras vezes expressa por publishers que se formaram nas mídias clássicas e ainda vivem delas.
Para chegar à compreensão dessas duas frases pequenas, mas enormes na profundidade dos desdobramentos do seu significado, os profissionais desta indústria, não só do Brasil como do exterior, precisam fazer uma operação de catarata. Precisam de uma intervenção que remova o cristalino opacificado dos olhos. Ele impede a visão nítida dos processos em curso.
Domínio inexistente
Para ficar em alguns exemplos de fora: nos EUA, a Time Warner não entendeu o que Cebrián expressa. Ela teve a AOL nas mãos e deixou-a definhar. O magnata Rupert Murdoch, idem. Ele teve o MySpace nas mãos e deixou-o escapulir. O New York Times ainda não viu a intensidade da luz. No Reino Unido, a BBC também entendeu pouco. Na Espanha, por mais paradoxal que possa parecer, nem Cebrián conseguiu convencer o seu grupo de comunicação a investir em linha com os desdobramentos do que ele expressa em palavras, com perfeição.
No Brasil, justiça seja feita, o único grupo de comunicação que entendeu de alguma forma (um tanto esquizofrênica) que a web deve ser abraçada naquilo que teve de mais inusitado em relação à indústria clássica – a interatividade, a impossibilidade de se ter um modelo vertical de negócio como é o da imprensa tradicional – é o Grupo Folha, com a iniciativa pioneira do UOL. Os demais grupos ainda tateiam sem conseguir saber ao certo onde o galo canta, porque, sem dúvida, o ouviram cantar.
Explico-me. Desde o século 19, quando a indústria da comunicação conseguiu ganhar escala, ela se sustenta num modelo que, no fundo, é um modelo de distribuição. Vou colocar o verbo no passado porque parte do que será dito à frente não acontece mais exatamente como sempre aconteceu – como os classificados, que mirraram nos jornais de todo o mundo depois do advento do Google.
Enfim, a empresa de comunicação produzia conteúdo e vendia espaço para publicidade (anúncios de página ou pequenos anúncios, os classificados). Dominava a técnica industrial da produção deste conteúdo informativo e publicitário e imprimia-o em papel (no formato de jornais e revistas) ou espargia-o pelo ar (via televisão e rádio). Em resumo, dominava o negócio da distribuição deste produto – seja via terrestre (entregar em bancas e domicílios) seja no ar (satélites, torres de transmissão).
Dominava toda a cadeia desta indústria, da produção dos conteúdos passando pela industrialização dele em papel ou em ondas de frequências baixas, médias ou altas. Fazia a distribuição deste conteúdo diretamente e unilateralmente para o consumidor. Detinha o domínio total da industrialização e distribuição do produto.
No novíssimo mundo da comunicação, que se pode considerar inaugurado no final do século 20, quando surge a internet comercial, essa verticalização de produção e distribuição, este domínio total do negócio da comunicação, deixou de existir.
As empresas até podem dominar mais de uma etapa no novíssimo e revolucionário processo da comunicação, mas ainda não apareceu aquela empresa que domine todas as etapas.
É aqui que entra a confusão.
Olhos opacos
Para colocar as coisas de forma a serem entendidas e, assim, obter sucesso na operação de catarata, é importante entender que esta nova indústria se assenta sobre quatro atividades distintas.
Primeira, a daquelas empresas que têm capacidade de produção de conteúdo na forma digital e de prover alguma eficácia na distribuição de anúncios online (sites de jornais, revistas, rádios, emissoras de TV). Segunda: daquelas empresas com capacidade de industrializar os aparelhos que suportam produtos digitais (computadores, consoles de games, aparelhos de telefonia móvel). Terceira, daquelas outras tantas com a expertise necessária para criar mediadores, manipuladores técnicos destes conteúdos (softwares). A quarta atividade pertence àquela parte das empresas que possui as redes de distribuição deste conteúdo (empresas de telecomunicações fixas e móveis, empresas de TV a cabo).
Algumas tentam somar atividades, mas pouquíssimas empresas desafiadoras do velho processo da comunicação o conseguiram. A Microsoft soma produção de software com produção de aparelhos – e conseguiu algo na produção de consoles de games, por exemplo. A Telefonica une produção de conteúdos noticiosos e de entretenimento (Terra) com sua atividade de telecomunicações.
Existem mais exemplos, poucos, mas é preciso ir adiante porque aconteceram coisas ainda mais relevantes. Desde a invenção da internet comercial, o conteúdo deixou de ser distribuído unilateralmente, o que viabilizou a verticalização e o domínio total do negócio. Então o consumidor passou de passivo a ativo. Adorou a interação, gostou de poder transferir para o mundo do megafone online as vitórias e as mazelas da sua vida cotidiana.
Ou seja, as pessoas passaram a ter elas próprias facilidades para criar conteúdos sem ter nenhum, absolutamente nenhum poder econômico. Qualquer um hoje pode se dirigir a um local de acesso público e gratuito à internet e criar um blog ou levantar um vídeo no YouTube. Com isso, poderá ganhar instantes de fama mundial se conseguir tocar corações e mentes com sua mensagem.
A indústria clássica da comunicação, avalizada pelo velho, bom e bem testado modelo de negócio da televisão e do rádio, achou que iria ganhar esta batalha apenas com a venda da publicidade online – primeiro erro. Achou que poderia melhorar as coisas se cobrasse pelo conteúdo que ela transpunha para o ambiente online – outro erro. Até hoje, vide iniciativa recente do New York Times, os jornais se torturam entre o ser e o não ser da cobrança de conteúdo.
Enquanto isso, o Google passou correndo por fora e conseguiu inventar uma maneira de manipular este conteúdo produzido tanto pela mídia clássica quanto pelos neófitos da nova mídia – pessoas, instituições e empresas. Criou um modelo nascido da experimentação do usuário, como constata muito bem Juan Luis Cebrián na entrevista.
Este modelo transformou o Google numa das maiores empresa de publicidade em todo o mundo a partir da sua capacidade extraordinária de indexar bem e de agregar conteúdos produzidos por outrem. Botou a humanidade conectada para trabalhar para ele, botou-a para interagir com seus algoritmos, criou facilidades para devolver à humanidade conectada o que ela quer. E, nota irônica, a maior parte dos resultados de uma busca por uma notícia específica no Google vem dos sites da mídia clássica. Mas se notícia fosse o que mais interessa na rede, então seria bem mais fácil resolver essa equação.
Tudo isso acontece sob os olhos opacos dos tradicionais agentes da indústria da comunicação, que caminham a esmo sem enxergar com clareza o seu futuro. Urge uma operação de catarata bem feita. Juan Luis Cebrián está na ante-sala, com anestesia local, mas está lúcido. Continuarei neste assunto, aqui.
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[Caio Túlio Costa é jornalista]