Friday, 29 de March de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1281

Dos ‘parâmetros’ a uma lista de conteúdos: o simples, o pouco e o mínimo

A reportagem ‘O essencial, mesmo’, publicada pela revista Nova Escola, na edição de maio de 2008, apresenta o currículo para o ensino de língua portuguesa e de matemática do 1º ao 5º ano do ensino fundamental. Aqui, chamo a atenção apenas para o currículo de língua portuguesa. Nesta direção, é de fundamental importância que nos perguntemos: O que é ‘currículo’ nessa reportagem? Quais as consequências dessa matéria para o ‘trincamento’ da democracia na educação sistematizada? O que é ensinar/aprender português? Na tentativa de refletirmos sobre os pontos elencados, indico abaixo o discurso dessa revista e como ele se constrói.

O texto em análise comenta que inúmeras questões/dúvidas são apresentadas pelos professores no tocante a quais saberes, de fato, são importantes para os alunos do 1º ao 5º ano. Diz ainda que as ‘respostas’ para essa problemática deveriam ser dadas pelas redes de ensino em um documento que listasse as expectativas de aprendizagem de cada disciplina. Na sequência, salienta que são poucas as redes que cumpriram ‘o dever de casa’ – com essa metáfora, parece colocar as redes de ensino no papel daquele aluno que vai mal na escola porque não cumpre com suas tarefas.

Lista de habilidades

Todavia, a matéria deixa entender que a culpa talvez não seja das redes de ensino em si mesmas. Para isso, argumenta que antes da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional [9.394/96] ser promulgada, existia um currículo – uma ‘prescrição curricular’, isto é, uma ‘lista de conteúdos’ – que era seguido por todos, mas que, com as diretrizes gerais propostas por essa LDB e pelos PCN (Parâmetros Curriculares Nacionais), deu-se às redes de ensino liberdade que gerou um ‘buraco negro’ e uma inquietação na sociedade. O ‘buraco’ foi/é gerado pelo desconforto do professor, que não sabe como agir com a infinidade de temas e sugestões e a inquietação se deu/dá porque a sociedade não sabe mais o que cobrar das escolas, diz a revista.

Com essa posição, a ‘revista de quem educa’ constrói nas entrelinhas de seu texto o discurso de que é melhor para a educação brasileira que se tenha um currículo, denominado de ‘diretrizes’, ‘expectativas de aprendizagem’, ‘descrição de conteúdos e habilidades’ e ‘prescrição curricular’. Porém, o que fica dessas nomenclaturas é a concepção de que currículo é uma ‘lista de contéudos’ que deve ser seguida por todas as redes de ensino.

Sendo assim, a Nova Escola se apresenta como a ‘salvadora da pátria’ e traça, para as redes de ensino, com base no currículo das redes paulistas e com a ‘ajuda’ de alguns especialistas, o tal currículo, que nada mais é do que uma lista de quarenta (40) habilidades como expectativas de ensino/aprendizagem de língua portuguesa: onze (1º ano), nove (2º ano), seis (3º ano), sete (4º ano) e sete (5º ano).

Sujeito para a produção

Agindo desta forma, é possível que haja um desmerecimento de todo o processo de discussão que permitiu que saíssemos de uma lista de conteúdos, vivenciada em época de ditadura, e também parece ofuscar a ‘liberdade’ dada para a elaboração de propostas de acordo com as realidades locais pelas escolas e redes de ensino, com base nas orientações dos PCN. Nesse discurso, mais que parametrizado, provavelmente exista um outro agravante à democracia na educação sistematizada: a negação da concepção de currículo como toda a organização do espaço escolar e o fato de que é mais útil a uma reflexão crítica pensarmos o que os conteúdos fazem com os alunos, ao invés de nos restringirmos a indagar o que os alunos fazem com os conteúdos.

Além disso, é de fundamental importância pensarmos sobre as habilidades elencadas para o primeiro segmento do ensino fundamental no que se refere à língua portuguesa para, assim, compreendermos o que é ensinar/aprender português na percepção da revista Nova Escola.

Das 40 habilidades citadas para os cinco anos, temos, de modo geral, apenas dezesseis (16), quais sejam: localizar, fazer, selecionar, escrever, reescrever, revisar, produzir, ajustar, utilizar, ouvir, ler, recontar, participar, apreciar, conhecer e entender palavras e textos. Dessas habilidades propostas, nove (56,25%) delas fazem referência ao ‘fazer’; quatro (25%), ao ‘comportamento’ e apenas três (18,75%) à ‘apreciação do mundo’. Ou seja, aprender português está vinculado ao agir e ao comportar-se frente a palavras e textos no espaço escolar, isto é, coloca o aluno como sujeito/ator nesse ambiente. Todavia, essas habilidades estão restritas ao mundo físico e ao da consciência (com atividades fisiológicas e verbais) e excluem o mundo das relações abstratas e das questões ideológicas, pois não estão neste currículo as questões existenciais e relacionais. Logo, o estudante de português deve ser sujeito para a produção.

Estratégia de controle

Seguindo esse raciocínio, vemos quase explicitamente a proposta de uma formação direcionada para o ‘fazer’ e para o ‘comportar-se’, ajustando professores e alunos às estruturas da atual sociedade, que se pauta pelo sistema neoliberal, aquele que apregoa a construção de indivíduos homogeneizados; iguais, na busca da produtividade. Portanto, a proposição da revista e os ‘conteúdos’ por ela listados não são desinteressados; ao contrário, é possível que se constituam como estratégias de governabilidade do docente e do estudante.

Pensando desta maneira, afirmamos que os PCN já são, em seu bojo, estratégias de controle das subjetividades e identidades dos sujeitos ensinantes/aprendentes de sua língua materna e que o ‘currículo’ apresentado pela reportagem em pauta é esse tipo de estratégia, de cunho mais exacerbado, pois é mais um episódio que ilustra, como assegura Paulo Ghiraldeli Júnior em A Educação e o Culto da Pobreza (2008), que para a educação no Brasil o que importa é o simples, o pouco e o mínimo, considerados como ‘o essencial, mesmo’.

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Mestre em Estudos de Linguagem (UFMT) e doutorando em Lingüística (UFPE); bolsista CNPq – Brasil