Nunca antes na história deste país se ouviu falar tanto em Ministério da Cultura. Na tradição política brasileira, o ministro da Cultura é o último a aparecer na foto, o último a ser nomeado, o último a ser barganhado. Ele tem uma pasta com 0,25% do Orçamento da União, um número que não desperta a cobiça de cabeças coroadas nem do oitavo escalão. Mas, nas últimas semanas, o nome da ministra da Cultura, Ana de Hollanda, não sai das manchetes dos jornais. Desgraçadamente, o que está na pauta não é qualquer de suas realizações; é meramente a iminência de sua queda.
O pretexto para as especulações está, a princípio, no alinhamento de primeira hora da ministra com o Ecad. É bem verdade que alinhar-se a um órgão com a reputação do Ecad equivale a ingerir um galão de arsênico sem açúcar. Os escândalos que rondam a entidade privada há muitos anos foram esquadrinhados desde que a ministra explicitou seu insólito entusiasmo, em pelo menos duas matérias de fôlego do O Globo – mas essa é apenas a ponta do iceberg. A ministra, sem qualquer sustentação outra que a da própria presidente da República, virou manchete porque assumiu o posto com uma redução de 40% no orçamento de sua pasta, confrontou as gestões anteriores e deixou a classe artística aturdida. Seus opositores, de dentro do PT, viram aí uma brecha para substituí-la de qualquer maneira.
O Ministério da Cultura lembra a velha parábola bolchevique. Dentro dele existem mais facções do que projetos em andamento. Isso não começou no governo Dilma, mas o fato é que nos últimos anos esteve bem controlado pelos ministros Gilberto Gil e Juca Ferreira. A má notícia é que o combustível que falta agora para os projetos sobra para alimentar as facções. Há um campo fértil para isso. Ao contrário do que aconteceu nas duas gestões anteriores, o Ministério da Cultura voltou a ser desimportante – mais apagado até do que era nos anos de Francisco Weffort. Neste momento, a meta mais importante é a de pagar as contas atrasadas. Se esse é o norte de um ministério, então o ministério está precisando de um norte.
Ação de repúdio
A verdade é que a produção cultural tornou-se dependente do governo a um nível insuportável. Políticas de sustentabilidade para o cinema não funcionaram porque, pela sua própria cartilha ideológica, governo que é governo só funciona se houver com a classe artística uma sólida relação de dependência. De quebra, essa produção está mumificada e, nas atuais circunstâncias, não tem como sair da armadilha em que se meteu.
O caso da Ancine (Agência Nacional de Cinema) é emblemático. Lá está o quartel-general de uma das facções mais ativas, incansáveis, politizadas, impertinentes e ao mesmo tempo mais débeis dentro do ministério. A Ancine é uma agência reguladora, mas a atividade cinematográfica segue, em tese, as diretrizes do Conselho Nacional de Cinema, que responde à Presidência da República. Pois não custa lembrar que logo na sua primeira reunião deste ano, o Conselho Superior de Cinema entregou à ministra da Cultura um documento assinado por mais de cem cineastas protestando contra o excesso de burocracia e ineficiência de gestão da Ancine. O assunto ganhou destaque desde o dia 4/4 no Globo, na Folha de S.Paulo e em vários outros jornais.
O que talvez nem tenham informado à ministra é que o documento dos cineastas era bastante moderado se comparado ao teor do que estava aparecendo naquelas últimas semanas na internet, particularmente em listas coordenadas pelos profissionais de cinema, como o Fórum dos Cineastas. Foi de lá que surgiu a iniciativa de se promover uma ação de repúdio à atuação da agência, ideia que foi debatida ao longo de um fim de semana, no Rio de Janeiro, por cerca de 30 realizadores de primeira linha do país. Críticas idênticas foram levantadas também na reunião do Comitê Consultivo da Secretaria do Audiovisual do Ministério da Cultura, no início de março em Brasília.
Termo apropriado
A Ancine, não custa lembrar, foi criada por sugestão dos próprios cineastas brasileiros, durante o III Congresso Brasileiro de Cinema, ocorrido há pouco mais de dez anos, em Porto Alegre. Naquela época, a categoria estava dispersa e desarticulada. Julgou necessária a criação de uma instância reguladora para a atividade. Os cineastas queriam um organismo que estivesse ao lado deles. Cinco anos depois, a proposta de aumento de atribuições da Ancine, com a criação da Ancinav, que entre outras coisas regularia também a televisão, dividiu o Conselho Superior de Cinema e remeteu o assunto, não às editorias de Cultura, mas de Política. A mídia, em grande medida, via a proposta como uma forte tentativa de ingerência do Estado nos negócios privados. Há muito tempo o termo “stalinista” não aparecia com tanta frequência nos jornais e revistas. No último instante, o presidente Lula, já em campanha pela reeleição e ainda atolado no lodo do mensalão, determinou que a proposta fosse abortada.
Hoje, a Ancine, desenhada para estar ao lado dos cineastas, é acusada de, no mínimo, dificultar-lhes a atividade. Mais do que isso, de inviabilizá-la sob pesados e quase sempre absurdos procedimentos burocráticos. Seus comissários são temidos onde quer que se rode um filme no país. Eles não vêm para explicar, mas para confundir. Na visão da categoria, a Agência já não é uma instância de apoio à atividade, mas de intimidação.
Se quisesse jogar com arrogância mais explícita, a agência poderia encarar isso como uma simples provocação de cineastas incômodos. A história está cheia de casos semelhantes. O Brasil já viu esse filme mas, há pouco mais de 40 anos, o ministro Golbery do Couto e Silva era um pouco mais sutil. Por isso, a agência faria melhor em tentar entender como ela mesma vem procedendo. Nestas circunstâncias, o termo “autocrítica” não poderia ser mais apropriado.
Não custaria à Ancine esclarecer, por exemplo, por que permitiu que a produção cinematográfica no país tivesse se tornado refém de pequenos burocratas que jamais participaram da própria atividade. As acusações que pesam sobre ela são suficientemente fortes para colocar em dúvida não apenas o que a agência tem feito, mas a razão pela qual ela existe.
Drácula na Transilvânia
É fácil encontrar a verdade. Basta procurar os profissionais de cinema ou televisão no Brasil que hoje apoiem os seus procedimentos. Esse número não chega a três. Se os próprios cineastas são contrários à agencia que os regula, uma pergunta torna-se imperiosa: a quem essa agência está servindo?
Quem responder que ela está servindo para alimentar uma máquina voraz de criação de empregos públicos, terá um coro de Nabucco. A Ancine conta hoje com mais de 470 funcionários, pagos com dinheiro público para, segundo os seus críticos, participar de festivais internacionais e infernizar a vida dos profissionais que no Brasil estão fazendo cinema – cineastas que não chegam à metade do efetivo que os controla. Se isso é doloso ou não é, não importa – mas a verdade é que a agência não tem obtido o êxito pretendido na sua tentativa de regular a atividade – e limitou-se daí a exercer um poder de indiscutível coerção sobre os produtores, que são o elo mais fraco da cadeia.
Recentemente, tentou voltar atrás, criando mecanismos de desburocratização dentro de sua Superintendência de Fomento, com o fim político de recuperar a simpatia da categoria. A emenda foi pior do que o soneto. A indignação aumentou, as medidas propostas no papel ainda não apareceram – e há sérias duvidas de que um dia venham a fazê-lo. Grande parte da categoria via na ministra uma possibilidade de aliança. Com políticas voltadas para uma visão mais popular da cultura, como os Pontos de Cultura, o ministério tentou alcançar camadas maiores da população – mas sua primeira providência foi justamente alinhar-se a um escritório de arrecadação de direitos autorais que é menos popular no país do que o conde Drácula é na Transilvânia.
Estagnou onde conseguiu avançar
Jogou querosene na fogueira. São tantas as listas na internet pedindo o afastamento da ministra, e tantas acusando golpismo de dentro do PT, que hoje é difícil saber quem está pedindo o quê. A leitura atenta dessas listas revelará casos de mudanças abruptas de posições, de subserviência explícita em troca de meras oportunidades de trabalho, ou de um verdadeiro balcão de oferecimentos para o cargo vacante, onde não faltam candidaturas de nomes que até ontem iam aos jornais para apoiar as ações do ministério.
O certo é que o MinC inverteu quatro boas características da gestão do ex-ministro Gilberto Gil: a de criar um quadro com nomes preparados, promover a unidade interna, sensibilizar o governo para algumas necessidades urgentes da pasta e colocá-la no trilho da modernidade, reconhecendo, pelo menos, a nova ordem da cadeia de valor do produto audiovisual, sobre a qual, neste momento, joga-se areia.
Se a ministra Ana de Hollanda cai antes da reforma ministerial ou se fica até lá, já não faz a menor diferença. O quadro dentro do Ministério da Cultura é hoje desolador. Todas as facções lutam autofagicamente pelo poder e todas engessam a atividade, lançam seus atores num triste papel de conspiradores ou vassalos. É matematicamente impossível contabilizar o que o país está perdendo com isso, seja nas atividades industriais ou artesanais ligadas à cultura. O embate agora é para restituir alguma ordem na grande confusão em que se tornou a cultura brasileira.
No início do governo Lula, nesse mesmo ministério, discutia-se inovação e formas contemporâneas de se lançar um olhar para a atividade audiovisual. Criava-se até um fundo de inovação que agora o próprio ministério revela publicamente que foi um engodo, que nunca existiu. Não faz muita diferença, portanto, saber quantos meses ainda a ministra da Cultura continuará empregada. Para onde foi a utopia da modernidade, sobre a qual um dia o cantor Gilberto Gil decidiu se lançar? Para que serve hoje o Ministério da Cultura? Por que, então, não transferir, mesmo que provisoriamente, suas atribuições para outra pasta?
É difícil saber o que se passa na cabeça da presidente Dilma, mas nesse clima o Brasil não avança um centímetro sobre as muitas conquistas recentes na área cultural. O país estagnou justamente onde conseguiu avançar quando um metalúrgico, que pouca afinidade tinha com o mundo da cultura, teve a sorte habitual de apostar no improvável.