Friday, 26 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1285

Entrevista de Hobsbawm, critérios de edição

Veja como se faz uma edição de uma entrevista para que se possa direcionar a formação de opinião de acordo com a linha editorial de um jornal. Descobri a montagem capciosa estranhando alguns posicionamentos de Eric Hobsbawm. Quem ler Tempos Interessantes perceberá algumas diferenças fundamentais. E esse é um livro de memórias. Seria estranho que ele negasse o que estivesse ali.

Tive o trabalho de fazer a comparação entre as duas entrevistas publicadas no domingo (30/9) – a dada na Folha de S.Paulo e a que está na Folha Online. Se tanto um quanto o outro veículo pertence ao Grupo Folha, por que a diferença? A questão é: quem acessa a internet à procura de uma entrevista do Eric Hobsbawm na íntegra? Um é para um público seleto e limitado. E a linha editorial do jornal pode também ter diferença em relação ao conteúdo publicado na internet.

Confira. O que se lê nos jornais, nem sempre é o que se é ou o que foi dito.

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Abaixo, trechos da entrevista de Eric Hobsbawm publicada na íntegra na Folha Online e da edição que apareceu na versão em papel. Nos detalhes em vermelho as partes que foram extraídas da edição publicada no jornal. Comentários meus nos trechos em recuo, entre colchetes. Vale perceber que o conteúdo retirado é aquele cujas idéias se chocam com a linha editorial do jornal, deixando visível uma manipulação com o intuito de conduzir a entrevista de forma evitar confronto entre as posições ideológicas do entrevistado e o que defende o jornal. O estranho não é a edição, às vezes ela torna-se necessária; mas, sim, o que se retirou da entrevista.

Ressalve-se, apesar da crítica, que é normal a edição de uma entrevista, devido ao espaço para publicação em papel ser reduzido. Portanto, não estou criticando a edição, mas estranhando que as partes extraídas se chocam com a linha editorial da Folha. Há, no mínimo, aspectos éticos nesse exemplo que devem ser questionados, já que se exige tanta ética por aí afora.

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FOLHA (online) – O sr. diz que seu objetivo ao escrever Globalisation, Democracy and Terrorism era ajudar os jovens a enfrentar o século 21 com o pessimismo necessário. Por quê?

Hobsbawm – Não gostaria que isso fosse tomado como apenas a impressão de um velho homem. O fato é que as perspectivas simplesmente não são boas. Não me refiro apenas à política internacional, mas também aos assuntos relacionados ao ambiente. Hoje já não se pode dizer tão seguramente, como se podia ao longo dos séculos 19 e 20, que estamos num caminho de progresso e que as coisas só vão melhorar. Questões como crise de energia e falta de água são reais. Outro processo que não vai parar é o da globalização, e talvez o preparo que se exija dos jovens é para que saibam como vão lidar com essa aceleração dramática. Como o otimismo é uma característica tão natural na juventude, é preciso que reflitam sobre como direcioná-lo a alvos certos.

FOLHA (papel) – O sr. diz que o objetivo de seu novo livro foi ajudar os jovens a enfrentar o século 21 com o pessimismo necessário. Por quê?

Hobsbawm – O fato é que as perspectivas não são boas. Não me refiro apenas à política internacional, mas também aos assuntos relacionados ao ambiente. Hoje já não se pode dizer tão seguramente, como nos séculos 19 e 20, que estamos num caminho de progresso. Questões como crise de energia e falta de água são reais. Outro processo que não vai parar é o da globalização, e talvez o preparo que se exija dos jovens é para que saibam como lidar com essa aceleração dramática.

[Isso se confronta com o caos e o pandemônio como, principalmente o Brasil, é apresentado na mídia. Ele propõe, de fato, encarar os problemas com otimismo, e não com ‘o pessimismo necessário’. Ao cortar essa parte foi apresentada uma visão oposta ao que o autor quis dizer.]

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FOLHA (online) – O sr. disse que não é mais um comunista porque o comunismo já não está mais na agenda política do mundo. Mas que continuará se posicionando firmemente contra o que chama de `tentativa sistemática´ e internacional de transformá-lo numa `patologia´ ou num `pecado´. Por que acha que o anticomunismo esteja tomando formas tão agressivas?

Hobsbawm – Não é exatamente assim. Na verdade, o comunismo como movimento que conglomera muita gente já não existe. Em número de militantes, é hoje nulo. Não se trata mais de uma alternativa no Ocidente. Tampouco é considerado mais como inimigo para os EUA.

Durante a Guerra Fria, sim, era uma ameaça ideológica contra o governo norte-americano. Por isso houve não só satanização das idéias e propostas comunistas como uma perseguição real aos que o defendiam.

A partir de 1989, passou a ser diferente. Com relação à China, por exemplo. O que quer que esteja acontecendo de errado lá não tem nada que ver com o comunismo. Também não acho que os trabalhadores que assinaram manifestos pelo comunismo no passado pensem que acreditaram num Deus que falhou. Apenas quiseram fazer uma opção, que não deu certo. E depois vieram outras.

Hoje, achar que o comunismo é um mal concreto é algo que está limitado ao meio intelectual, aos que escrevem história ou artigos para jornais. Mais especificamente, a intelectuais de países em que o comunismo foi muito influente no debate político. Então chegou um momento em que essas pessoas quiseram reagir contra, como se estivessem pedindo desculpas pelo próprio passado, estabelecendo uma linha. Foi como se dissessem: ´Eu costumava acreditar, mas agora…´. Por exemplo, François Furet [historiador francês, autor de ´Pensando a Revolução Francesa´], quando o conheci, ele não era apenas um comunista, mas um enfático militante stalinista. E depois virou-se completamente.

Apenas nos ex-países comunistas do Leste Europeu o anticomunismo assumiu a forma de uma revolta real contra um determinado sistema. O anticomunismo de hoje é forte apenas no plano da discussão intelectual, geralmente em países que tiveram muitos militantes comunistas no passado. Fora desse círculo, já não se trata mais de um perigo real, não é sequer uma alternativa. Simplesmente deixou de ser um assunto importante.

FOLHA (papel) – O sr. disse que não é mais um comunista porque o comunismo já não está mais na agenda do mundo. Por que o anticomunismo está tomando formas tão agressivas?

Hobsbawm – O comunismo como movimento que conglomera muita gente já não existe. Não se trata mais de uma alternativa no Ocidente. A partir de 1989, passou a ser diferente. Com relação à China, por exemplo, o que quer que esteja acontecendo de errado lá não tem nada que ver com o comunismo. Também não acho que os trabalhadores que assinaram manifestos pelo comunismo no passado pensem que acreditaram num Deus que falhou. Apenas quiseram fazer uma opção, que não deu certo. Hoje, achar que o comunismo é um mal concreto é algo que está limitado ao meio intelectual. Mais especificamente, a intelectuais de países em que o comunismo foi muito influente no debate político. Então chegou um momento em que essas pessoas quiseram reagir contra, como se estivessem pedindo desculpas. Por exemplo, François Furet [historiador francês, autor de ‘Pensando a Revolução Francesa’], quando o conheci, ele não era apenas um comunista, mas um enfático militante stalinista. E depois virou-se completamente.

[As partes extraídas dessa resposta alteram substancialmente o sentido dela. Primeiro porque ele corrige a jornalista em sua versão original; segundo, porque não é feito referência à ‘demonização’ aos comunistas, prática comum até os dias atuais; terceiro, porque extraiu maliciosamente a referência aos artigos publicados nos jornais (majoritariamente anticomunistas); por último, pelo fato de a revolta contra o comunismo ter como relevância nos países em que ocorreu uma experiência negativa, e não da idéia ou ideologia em si. Por isso ele diz: ‘Com relação à China, por exemplo. O que quer que esteja acontecendo de errado lá não tem nada a ver com o comunismo’. Essa frase foi mantida, mas com um sentido dúbio.]

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FOLHA (online) – No prefácio de Globalisation, Democracy and Terrorism, o sr. diz que suas convicções políticas são indestrutíveis.

Hobsbawm – Sim, minha convicção de ser de esquerda continua. Me posiciono fortemente contra o imperialismo. Contra as forças que acham que estão fazendo um bem para outros países ao invadi-los, e contra a tendência de pessoas que pelo fato de serem brancas acham que são superiores. Essas certezas eu não abandono. Mas algumas das minhas convicções mudaram. Não acredito mais que o comunismo como foi aplicado poderia ainda dar certo. E não sou mais um revolucionário. A revolução tampouco está hoje na agenda. Porém, não acho que tenha sido mau para mim e para minha geração termos sido revolucionários. Cresci na Alemanha de Hitler, sempre odiarei totalitarismos. A idade e a experiência me fizeram menos revolucionário. Mas não acho que foi ruim tê-lo sido. Ao contrário, foi essencial.

FOLHA (papel) – No prefácio de seu novo livro o sr. diz que suas convicções políticas são indestrutíveis.

Hobsbawm – Sim, minha convicção de ser de esquerda continua. Me posiciono fortemente contra o imperialismo e contra as forças que acham que fazem um bem a outros países ao invadi-los, e contra a tendência de pessoas que, por serem brancas, são superiores. Essas certezas eu não abandono. Mas algumas das minhas convicções mudaram. Não creio mais que o comunismo como foi aplicado poderia dar certo. E não sou mais revolucionário. Porém, não acho que tenha sido mau para mim e para minha geração termos sido revolucionários. Cresci na Alemanha de Hitler, sempre odiarei totalitarismos.

[A revolução não está na agenda. Não quer dizer que ela tenha sido eliminada definitivamente. E, o mais importante, a declaração sobre o fato de ele haver sido um revolucionário, colocado como algo de essencial em sua vida.]

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FOLHA (online) – Mas o sr. acredita que a supremacia norte-americana esteja em vias de se dissolver?

Hobsbawm – A Guerra do Iraque está demonstrando que exercer influência no mundo todo não será possível. Ela está demonstrando que mesmo uma grande concentração de poder militar não pode controlar um Estado relativamente fraco sem certa aprovação ou consenso deste.

Há quem discuta a idéia de impérios informais, baseados nas corporações econômicas transnacionais. Mas esse é um tipo de poder frágil, fácil de explodir. O papel dos governos e Estados Nacionais diminuiu muito nos últimos 20, 30 anos. E o do capitalismo internacional aumentou. Mas não o suficiente para substituí-lo.

O mundo ainda se apóia muito numa simbiose entre Estados e infra-estruturas nacionais. Acredito que o que vai permanecer é um sistema internacional em que diferentes unidades vão operar juntas. A influência regional seguirá sendo possível e exercida por potências locais.

Quanto ao projeto norte-americano especificamente, defendo neste livro que está falindo. Isso que não significa que os EUA se tornarão um país mais fraco, ou que esteja em declínio ou colapso. Mesmo que perca todos os seus soldados, continuarão sendo uma nação populosa, importante econômica e politicamente.

FOLHA (papel) – Mas o sr. acredita que a supremacia norte-americana esteja em vias de se dissolver?

Hobsbawm – A Guerra do Iraque está demonstrando que exercer influência no mundo todo não será possível. Ela está demonstrando que mesmo uma grande concentração de poder militar não pode controlar um Estado relativamente fraco sem certa aprovação ou consenso deste. Defendo no livro que o projeto norte-americano está falindo. O que não significa que os EUA se tornarão um país mais fraco, ou que estejam em declínio ou colapso. Mesmo que percam os seus soldados, continuarão sendo uma nação importante, econômica e politicamente.

[Aqui há uma crítica importante ao papel das grandes corporações, extremamente relevante pelo poder que elas exercem hoje, inclusive na mídia. Na verdade, a parte excluída pressupõe uma crítica ao neoliberalismo e expõe, segundo ele, a importância do Estado, o que se confronta claramente com a linha editorial da Folha, claramente privatista e neoliberal.]

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FOLHA (online) – Mas onde estão os indícios dessa falência, além do fracasso da intervenção militar no Iraque?

Hobsbawm – O império norte-americano não permanecerá, entre outras razões, por questões internas. A maior parte dos norte-americanos não quer saber de imperialismo e sim de sua economia interna, que tem demonstrado fragilidades. O capitalismo tem passado por uma crise desde o final dos anos 90. O governo norte-americano não tem lidado bem com isso. Logo os projetos de dominação mundial terão de dar lugar a preocupações econômicas. E os outros países, se não podem conter os EUA, têm de acreditar que é possível tentar reeducá-los.

FOLHA (papel) – Mas onde estão os indícios dessa falência, além do fracasso da intervenção militar no Iraque?

HobsbawmO império norte-americano não permanecerá, entre outras razões, por questões internas. A maior parte dos norte-americanos não quer saber de imperialismo e sim de sua economia interna, que tem mostrado fragilidades. Logo os projetos de dominação mundial terão de dar lugar a preocupações econômicas. E os outros países, se não podem conter os EUA, têm de acreditar que é possível tentar reeducá-los.

[A omissão sobre a crise do capitalismo. Percebam o período citado por Hobsbawm como sendo dessa crise: ‘desde o final dos anos 90’. Conseqüência do fracasso mundial das políticas neoliberais.]

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Professor do Instituto de Estudos Sócio-Ambientais da Universidade Federal de Goiás