Thursday, 18 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1283

Figurantes na sociedade, protagonistas na mídia

A discussão deste artigo consistirá em uma reflexão acerca da situação segregadora em que vivem os moradores de favela e de como a mídia, juntamente com a sociedade, estereotipam esses indivíduos. Desse modo, a abordagem procura retratar como as classes menos favorecidas sofrem com os estigmas e como estes podem influenciar na relação entre a sociedade e os indivíduos marginalizados – e também os conseqüentes reflexos na vida urbana.

A partir desses pressupostos, procuramos explicitar a idéia do esgarçamento do tecido social, que é engendrado pela existência de preconceito e exclusão, os quais contribuem para o processo de formação da auto-imagem do indivíduo marginalizado. O referido comportamento é consolidado pela mídia, que tenta assumir a função de construtora da realidade, atuando e interferindo nesse processo de maneira decisiva em virtude de interesses preestabelecidos. ‘[…] As notícias são distorções sistemáticas que servem os interesses políticos de certos agentes sociais bem específicos que utilizam as notícias na projeção da sua visão do mundo, da sociedade etc.’ (TRAQUINA, 2005, p.163).

Dentre os fatores gerados pelas práticas excludentes, percebemos a incansável busca pela visibilidade social que alguns jovens manifestam através do fascínio por status e sedução proporcionados pelas armas de fogo, as quais representam para eles reconhecimento e poder. A maneira que esses indivíduos encontram para serem notados é descrita com propriedade no livro Cabeça de Porco, no capítulo ‘O menino invisível se arma’: ‘O sujeito que não era visto, impõe-se a nós. Exige que o tratemos como sujeito. Recupera visibilidade, recompõe-se como sujeito, se reafirma e reconstrói’ (ATHAYDE et al., 2005, p.215).

Menosprezados e inferiorizados

Partindo dessas premissas, abordaremos aspectos sociais, psicológicos e comunicacionais que aparecerão constantemente no decorrer da pesquisa como fatores determinantes, tanto para quem exclui quanto para os excluídos.

Para o psicanalista André Green apud Bock et al. (2002, p.203-204), a identidade faz parte de uma construção contínua e permite uma relação com os outros, propiciando o reconhecimento de si. Assim, quando essa identidade tem atributos carregados de um valor negativo, o estigmatizado e os demais incorporam as associações que influem no processo de internalização dos comentários e ele passará a se ver como os outros o enxergam. Isso atinge a autoconfiança e a auto-imagem dos indivíduos. Exemplo dessa estigmatização aconteceu em 1986, quando cartazes com o título ‘defeito de fabricação’ foram espalhados por Salvador, capital baiana, com a imagem de um jovem negro, usando correntinhas no pescoço, canivete na mão, tarja nos olhos e seguido pela mensagem: ‘Tem filho que nasce para ser artista. Tem filho que nasce para ser advogado e vai ser embaixador. Infelizmente, tem filho que já nasce para ser marginal’ (SODRÉ, 1999 p.235). Ambientes socialmente desfavoráveis podem pôr em risco o amadurecimento e a formação desses jovens enquanto cidadãos. Ser foco de discriminação pela origem ou cor da pele também gera revolta e reivindicação por oportunidades iguais, pois aqueles que sofrem com as injustiças sociais se percebem menosprezados, desvalorizados e inferiorizados socialmente.

Preconceito velado

Na atual conjuntura brasileira, a realidade socioeconômica é pautada na dissociação entre favela e sociedade, sendo a última segregadora e responsável pela caracterização da imagem do pobre ‘favelado’, que para ela é interessante tornar invisível. A invisibilidade social é um problema contemporâneo que deve ser combatido pela sociedade, pois, como descrito em Cabeça de Porco, pode gerar revolta e atos criminosos. Porém não se trata de uma questão determinante – pelo contrário, está relacionada a outros fatores que apontam para a gravidade e complexidade da violência nas grandes cidades.

Pobres, negros, homossexuais, mulheres e analfabetos são os principais alvos de expressões preconceituosas. No entanto, isso aparece mascarado através dos discursos e representações ideológicas, elementos indissociáveis que materializam o pensamento dominante, que é disseminado pela elite detentora dos MCM e intitula o Brasil como um país democrático onde a miscigenação dos povos e o grande número de religiões proporcionam uma convivência harmoniosa. Mas sabemos que isso se trata de um mito, pois se o país não fosse racista e excludente não se enquadraria, por exemplo, no rol dos países com maior concentração de renda do mundo.

Mas em sociedades hierarquizadas e pessoalizadas, como o Brasil, a gradação e o clientelismo diluem o preconceito que sempre pode ser visto como dirigido contra aquela pessoa, e não contra toda uma etnia. Daí a nossa crença em que não temos preconceito racial, mas social, o que, tecnicamente, é a mesma coisa. Numa sociedade onde somente agora se admite não existir igualdade entre as pessoas, o preconceito velado é uma forma muito mais eficiente de discriminar, desde que essas pessoas ‘saibam’ e fiquem no seu lugar (DAMATTA, 2004, p.26).

Famintos de reconhecimento

Inseridos em uma sociedade historicamente preconceituosa, jovens moradores de favelas, em sua grande maioria afrodescendentes, são impedidos de desfrutar de uma vida digna, com igualdade e oportunidade de acesso aos bens necessários à existência humana, como trabalho, habitação, saúde, educação, lazer e reconhecimento, fatores estruturais que constituem a condição para efetivação da cidadania. Conforme o relatório ‘The Challeng of the slums’ (O desafio das favelas), divulgado pelas Nações Unidas em 2001, 32% da população das cidades do mundo moravam em favelas (ALVES et al., 2006).

O termo favela é utilizado para designar construções habitacionais irregulares e densamente povoadas. Muitas vezes são atribuídos significados pejorativos aos habitantes desses casebres, que são as principais vítimas da exclusão e da falta de assistência governamental e, se vivem de forma precária, é porque existem interesses que inviabilizam qualquer tipo de melhoria. O poder público que deveria, por obrigação, zelar pela sociedade em geral, priva os favelados – como costumam ser chamados – dos mínimos direitos. Eles funcionam apenas como uma espécie de ‘figurantes’ sociais, para os quais só cabe o dever de pagar impostos. Diante disso, os moradores das periferias percebem-se como principais vítimas da desigualdade, a qual distancia cada vez mais o ‘morro’ do ‘asfalto’, situação alimentada pela própria sociedade, acrescida da participação das violentas incursões policiais às favelas e reforçada pelos discursos preconceituosos dos veículos de comunicação. No Brasil, devido à má distribuição de renda, vem ocorrendo um fenômeno conhecido como favelização, resultante da dívida social que propicia o crescimento desequilibrado de moradias ‘amontoadas’, onde vivem pessoas em condições subumanas.

A grande luta desses meninos é contra a invisibilidade. Nós não somos ninguém e nada se alguém não nos olha, não reconhece o nosso valor, não preza a nossa existência, não nos devolve nossa imagem munida de algum brilho, de alguma vitalidade, de algum reconhecimento. Esses meninos estão famintos de existência social, famintos de reconhecimento (depoimento do sociólogo Luiz Eduardo Soares. Ônibus 174, 2002).

Meras estatísticas

Para tentar suprir as lacunas econômica, familiar e mesmo social, muitos jovens enveredam pelo comércio ilegal de drogas, passam de pequenos ‘falcões’ a comandantes de quadrilhas e facções, pois a curto prazo é o meio mais fácil de eles ganharem dinheiro. O desvio de conduta de alguns não representa a totalidade. Entretanto, acontece um estigma generalizado. Os indivíduos que estão à margem da sociedade são constantemente discriminados, pois a eles são atribuídas denominações pejorativas de marginais, bandidos, delinqüentes e são vistos como uma ameaça à população que vive no ‘asfalto’. Muitos não conseguem trabalho por morar em favelas, pois as pessoas as associam à criminalidade. ‘Drogas, armas, sem futuro/Moleque cheio de ódio, invisível no escuro/É fácil vir aqui e mandar matar/Difícil é dar uma chance a vida/Não vai ser a solução mandar blindar/O menino foi pra vida bandida’ (Falcão-MV Bill).

O fato de citarmos que a situação de abandono pode causar o ingresso de muito jovens no mundo do crime, não significa dizer que todos que lá estão são vítimas e, por isso, devem ser perdoados pelos seus atos. Porém, devemos pensar e questionar as autoridades sobre como as penas estão sendo aplicadas, se realmente dão resultados e se não deveria haver uma reestruturação no sistema penal brasileiro. O filme Carandiru e o documentário O prisioneiro da grade de ferro discutem a maneira subumana de tratamento dos detentos e a indiferença social. O livro Elite da Tropa, mesmo sendo uma obra fictícia, também aborda como a polícia trata os possíveis transgressores, o terror que impõe à população e a corrupção dentro da própria instituição.

O Brasil privilegiado não conhece o Brasil segregado. Todavia, insiste em fazer julgamentos acerca da integridade moral de seus tão próximos e, ao mesmo tempo, tão distantes cidadãos. Estamos acostumados a ver descrições e abordagens superficiais de quem não conhece a realidade brasileira de perto, mas através de avaliações por amostragens, as quais tratam pessoas como meras estatísticas. Não se preocupam em saber o que os indivíduos acham a respeito de sua situação enquanto cidadãos privados de direitos, nem de como avaliam as abordagens dos estudiosos e da mídia.

Comerciais folhetinescos

A sociedade não se importa com os indivíduos que estão à margem dos direitos garantidos aos cidadãos. Apenas se lembra deles quando se sente ameaçada, ou quando, de forma irresponsável, a mídia aborda assuntos relacionados a este segmento social. Insistentemente, na imprensa populista e sensacionalista, são agendados diferentes enfoques para os assuntos relacionados à criminalidade sem, entretanto, disponibilizar espaço suficiente para a população que se encontra à margem dos mais ínfimos direitos. Em 7 de fevereiro de 2007, João Hélio, um garoto de seis anos de classe média alta, foi arrastado por sete quilômetros preso no cinto de segurança do carro de sua mãe – o qual havia sido roubado, na Zona Leste do Rio de Janeiro. A imprensa, de maneira sensacionalística, passou semanas seguidas noticiando e pautando discussões na sociedade sobre a violência, como se fosse o primeiro caso de atrocidade contra uma criança. Em 1° de outubro de 2006, Renan Ribeiro, de três anos, morador da Favela da Maré, levou um tiro de fuzil na barriga – no entanto, a divulgação que a mídia deu sobre o assunto foi de que a criança tinha sido ‘mais uma vítima de bala perdida’, embora houvesse várias testemunhas garantindo que o tiro viera de um policial. Essa notícia foi veiculada como um caso a mais no jornalismo, porém o enfoque dado ao caso João Hélio teve uma repercussão enorme na opinião pública, devido à insistência da mídia.

A população brasileira aceitou a idéia de que a violência urbana e o tráfico de drogas são inerentes e irreversíveis à nossa realidade. Dessa forma, reagem às notícias diárias sobre criminalidade como se fossem situações ‘normais’ e inevitáveis. Nos folhetinescos comerciais, permeiam construções espetacularizadas, exacerbadas com o intuito de ‘modelar’ a audiência para futuros julgamentos pré-concebidos a respeito dos excluídos.

‘A senhora vai ver’

O documentário Ônibus 174 [o filme foi lançado em 2002, pelo diretor José Padilha, e sua construção mergulha fundo no episódio, principalmente nas questões sociais e na história de Sandro do Nascimento. Busca sair da superficialidade da imagem de bandido violento e drogado, exibida pelos principais veículos de comunicação, durante as 4h de cobertura do acontecimento em 12 de junho de 2000] retrata com enfoque mais aprofundado e analítico o seqüestro de um ônibus no Rio de Janeiro por Sandro do Nascimento, discute e contextualiza as causas que o levaram a tomar essa atitude violenta e assim, tenta mostrar a história que carregava aquele jovem de 21 anos, que ficou despercebida pela cobertura midiática, sendo este o principal foco da ‘trama’.

Sandro, aos seis anos, viu sua mãe ser assassinada, fugiu para a rua e foi um dos 69 sobreviventes da Chacina da Candelária [a Chacina da Candelária aconteceu na madrugada do dia 23 de julho de 1993, no Rio de Janeiro, quando seis homens encapuzados assassinaram oito menores dos setenta e sete que dormiam na Praça da Candelária. A atitude foi uma represália ao apedrejamento de carros da polícia e conflitos entre os meninos de rua e os guardas]. Depois de tantos anos vivendo sob a invisibilidade para quase todos os segmentos sociais, encontra-se, no momento do seqüestro, como protagonista, mas diferente dos mocinhos exaltados pela mídia. Ali, ele era um anti-herói que aterrorizava e deixava os brasileiros e o mundo apreensivos ao verem em tempo real um ‘criminoso’, aparentemente sob o efeito de entorpecentes, ameaçando matar a qualquer hora seus reféns. A televisão, para esses invisíveis, é a maneira mais eficaz de se sentirem parte da sociedade e percebidos por ela, por isso esse vislumbre pela aparição: ‘[…] Ele falava que eu ia ver ele na televisão fazendo sucesso. Eu peguei e falei a ele: ‘Meu filho, eu espero e quero ver você fazendo sucesso e você também vendo.’ Ele disse: ‘E a senhora vai ver. Se eu não ver, a senhora vai ver’’ (dona Elza, mãe adotiva de Sandro, Ônibus 174, 2002).

O impacto e a reação

A certeza de que ao responder às expectativas das pessoas – a população, devido ao estigma, espera atitudes violentas e ilícitas por parte dos indivíduos das classes menos abastadas – pode ser a única e mais expressiva maneira de notoriedade. Os marginalizados se sentem estimulados e recompensados ao verem-se nas páginas dos jornais, ou como principal notícia dos programas de telejornalismo. Assim, para seu alcance não importa o método, já que a maioria excluída e também privada de uma estrutura ou aparato familiar, não tem nada a perder. Então, não importa o modo a ser adotado para esse reconhecimento, o importante é ser reconhecido, mesmo que depois de mortos. E ainda encontram nos meios de comunicação uma base para fixar seus ‘ideais’, pois contam com atitudes como a de tantos ‘Sandros’ para, a partir de coberturas sem contextualização e despreocupadas com a situação social desses sujeitos, afirmarem os estereótipos e propagarem terror.

A consciência do impacto causado pelo sensacionalismo resulta em um jornalismo cuja intenção comercial é mais válida do que a responsabilidade social. E é assim que se comportam alguns veículos midiáticos, sobrepondo interesses lucrativos aos princípios jornalísticos e éticos. E, conforme está previsto no parágrafo I Art.1° do Código de Ética dos Jornalistas Brasileiros, vigente desde 1987, ‘o acesso à informação pública é um direito inerente à condição de vida em sociedade que não pode ser impedido por nenhum tipo de interesse’. Sendo assim, essa sobreposição do interesse social e coletivo pela disputa de audiência e anunciantes atinge, além da ética profissional, a pessoal.

Hoje, no país, falar de ética e direitos iguais acaba sendo hipocrisia, pois estamos ‘acostumados’ a presenciar casos em que as leis só são reconhecidas na teoria, ou então colocadas em prática apenas para o bem dos conhecedores ou detentores de algum status. A mídia, por sua vez, abusa do seu poder de acessibilidade e persuasão de forma intencional e perversa, em virtude da influência que pode exercer sobre os receptores e a repercussão que um assunto pautado em interesses pode causar na sociedade, sem muitas vezes levar em consideração o impacto e a conseqüente reação dos ‘figurantes sociais’.

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Estudantes do 5º semestre do curso Comunicação Social da Faculdade 2 de Julho e estagiárias do Jornal Leia, Salvador, BA