Thursday, 21 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Florestan Fernandes, o PT e a imprensa

Lula: ‘Afinal, você é nosso aliado ou inimigo?’

Florestan: ‘Isso não pega comigo, porque tenho origem inferior à sua… Eu não sou obreirista e não me ajoelho diante do deus operário. Para eu entrar no PT, quero que ele defina seu programa, esclarecendo melhor quais as opções que envolvem sua presença como núcleo político da classe trabalhadora’.

Avenida na cidade em que moro, Niterói (RJ); conjunto habitacional em Campo Grande (MS); Instituto de Políticas Públicas em São Paulo (SP); cátedra do Conselho Latino-Americano de Ciências Sociais (Clacso). Neste início de 2005, mais duas homenagens ao fundador da moderna sociologia brasileira. Em janeiro, a inauguração da Escola Nacional Florestan Fernandes, criada pelo Movimento dos Trabalhadores Sem-Terra (MST) para engendrar a formação de lideranças políticas em prol da Reforma Agrária. Nesta segunda-feira, 14 de fevereiro, a Câmara dos Deputados lançou O mestre radical, dedicado ao período em que representou o Partido dos Trabalhadores na casa (1987-1995). De autoria de Laurez Cerqueira, o livro é o primeiro número da nova série ‘Perfis Parlamentares’.

Estas, com certeza, apenas inauguram as muitas homenagens que ele receberá neste seu décimo aniversário de falecimento. Mais do que a lembrança do que fez Florestan, no entanto, é de grande valia aproveitar a oportunidade para, a partir de sua contribuição (nos campos da política, da academia e do jornalismo), lançar luzes sobre antigos e novos dilemas que ainda permeiam a nação. Entre tantas, uma das tarefas mais instigantes é a análise, a partir de um olhar florestânico, sobre a rotação política sofrida pelo PT na última década.

O objetivo aqui é, ainda que de forma sucinta, listar algumas reflexões feitas pelo sociólogo durante o período de fundação, maturação e consolidação da agremiação política para, ao fim, lançar novo foco sobre a questão do poder num momento em que, para utilizar as palavras do mestre, temos ‘o domínio quase absoluto da ideologia burguesa através dos meios de comunicação de massa’ (A ditadura em questão, T.A.Queiroz, 1982, p. 81).

O PT e a Constituinte

Ainda em pleno regime de exceção, Florestan aponta, no livro supracitado, os princípios básicos que um partido operário deveria honrar para levar a cabo a destruição efetiva da ditadura – evitando-se, assim, uma ‘liberalização outorgada’ que consagrasse uma nova modalidade da autocracia burguesa – e a criação de uma democracia substantiva no Brasil: 1) uma clara associação com o socialismo proletário; 2) uma nítida vinculação com a luta de classes nas condições concretas existentes. Sem conteúdos socialistas nítidos, afirmava, os partidos ‘oscilariam facilmente para a submissão dócil, o aburguesamento das lideranças e a conciliação política como recurso de sobrevivência, deixando as classes trabalhadoras entregues a si próprias e sem bússola política’ (op. cit., p. 83).

Por não ver no horizonte político nacional nenhuma experiência que levasse em conta essa ‘tarefa radical’, é que só tardiamente Florestan ingressa em um partido político. Ainda que longe de representar o ‘socialismo de massas’ sonhado pelo iminente sociólogo, aceitou o convite para ingressar no PT e concorrer a uma vaga à Assembléia Nacional Constituinte. Sua crítica à falta de um programa que galvanizasse o respectivo partido como núcleo político da classe trabalhadora, devido às ambigüidades provocadas pelas correntes mais intelectualistas e as tendências cristã e social-democrata, não impediu que ele ouvisse o apelo de amigos e setores da sociedade civil organizada (inclusive de membros de outras agremiações) e enfrentasse essa empreitada – que se tornava ainda mais desafiante se levarmos em conta os problemas de saúde que o atormentavam.

Além disso, candidatei-me por coerência pessoal: para defender no Congresso as posições que sempre preguei. Tenho poucas qualificações. Não sou político profissional, mas me orgulho de participar desse processo do PT. Vou falar não em nome, mas através de um partido que defende o socialismo proletário… Com 66 anos ou faço o que posso ou não farei nada… Se falhar, falharei com boas intenções (Democracia e desenvolvimento. Hucitec, 1994, p. 131).

Assim, como numa evolução inversa (uma revolução?), o professor Florestan ‘se partia ao meio’ em busca de uma crescente participação publicista especificamente política, levando sua luta ‘tensa, insurgente, antielite e contra ordem social capitalista’ para fora da universidade, o que lhe fazia se perguntar: ‘Encontrei um equilíbrio entre as duas partes do meu ser e uma resposta aos meus anseios revolucionários? Poderei servir ao proletariado e aos humildes como servi à universidade?’ (Em busca do socialismo, Xamã, 1995, p. 15).

Momentos especiais

A julgar pelo seu trabalho como parlamentar, não há duvida que sim. Expressando as naturais tensões entre a teoria e a prática, a sua postura durante e após a Constituinte esteve sempre vinculada aos movimentos sociais mais aguerridos (da educação, negros, mulheres, índios, aposentados e, entre outros, sem-terra), desfraldando as bandeiras mais radicais que visavam o estabelecimento de uma democracia mais includente e participativa – ainda que nos marcos de um ‘capitalismo periférico’. Mas, apesar de ter ajudado nos contornos mais progressistas da Constituição de 1988, Florestan acabará com uma visão muito crítica dessa experiência, afirmando que, muitas vezes, não passava de um ‘ornamento da casa’ devido ao seu prestígio de intelectual.

A visão que eu tinha do Estado brasileiro, até certo ponto, era simplista. Acreditava ser possível, através das representações que os partidos de esquerda conquistaram, introduzir no Parlamento – como no caso europeu – um clima em que o socialismo tivesse algum significado e que as reivindicações populares ressoassem com maior vigor (Democracia e desenvolvimento, Hucitec, 1994, p. 156).

Reclamando uma conexão mais orgânica entre as forças parlamentares e extraparlamentares progressistas (‘a chave está na sociedade civil’, lembrava o marxista), a ‘flor exótica’ do Congresso queixava-se da falta de solidariedade de seus pares de esquerda, já que, quase sempre, era mais ouvido pelos adversários ideológicos do que pelos seus partidários. Já em uma entrevista de 1989, Florestan aponta uma tendência de enfraquecimento dos propósitos revolucionários do PT, a começar pelo lépido desejo de alguns setores em alcançar, de qualquer forma, o chamado ‘poder’. Mal se torna um partido pujante e ‘imediatamente, quer conquistar o poder, quer fazer a revolução de cima para baixo… É uma ilusão pensar que aqui, no Brasil, nós possamos conquistar o poder legal e, daí, fazer uma revolução de cima para baixo’ (op. cit., p. 169).

O ápice dessa passagem primeira pela política parlamentar? Ele não tem dúvida: as campanhas, que proporcionaram momentos especiais de articulação de forças, uma interessante experiência de co-educação entre ‘intelectual’ e ‘massa’.

A tarefa partidária

Em 1990, elege-se para o seu segundo mandato com o apoio das mesmas forças sociais que representou na Constituinte. Marcado pela ‘humilhante’ derrota eleitoral do PT (e não de Lula, fazia a ressalva) em 1989, que veio a se somar aos traumas da Nova República e da Constituição inacabada, Florestan vai se dedicar ao fortalecimento do partido – que, a seu ver, não poderia mais se mostrar ‘fraco diante dos papéis históricos que lhe cabiam’. A sua agremiação política, defende o então deputado, deveria atuar em três frentes: 1) na abertura da ordem existente para as reformas sociais; 2) na criação de uma democracia que desse voz aos trabalhadores e oprimidos; e 3) na formação das premissas históricas de uma revolução socialista (O PT em movimento: contribuição ao I Congresso do Partido dos Trabalhadores, Autores Associados, 1991). Ciente de que a social-democracia não abria caminho para o socialismo, Florestan afirmava que caberia ao PT encampar um projeto histórico socialista com base numa ótica revolucionária para educar as massas – o que para tal deveria aproveitar as forças dos mais variados movimentos sociais, de forma articulada e não-fragmentada.

A tarefa partidária, de decisivo significado pedagógico-estratégico, se distribui em duas frentes complementares: 1) combater no campo das reivindicações concretas, já que essa é a ‘arena que prepara os de baixo para aprender o que é auto-emancipação coletiva e cidadania’ (op. cit., p. 48); 2) despertar a consciência social para reformas que abram um espaço democrático nas relações de classe e, assim, viabilize a passagem da luta convencional para embates que envolvam a construção de uma sociedade civil democrática – condição para a prolongação da luta política pelos que almejam iniciar uma nova civilização.

Dessa forma, Florestan alertava para a possibilidade do PT ficar aquém de suas possibilidades históricas caso não se assumisse como ‘partido operário socialista’. Se ficasse preocupado apenas com seu rápido crescimento quantitativo, poderia ficar refém das ‘armadilhas de uma aliança entre burocracia e profissionalismo político’ e ceder, ainda mais, ‘à pressão conservadora e à moda na questão do [fim do] socialismo’. Questionando a participação no governo, a representação parlamentar e a democracia eleitoral como um valor em si, o sociólogo em experiência política clama para que seus partidários lembrem que o que se deve discutir são os meios que conduzem à ‘revolução dentro da ordem’ e à ‘revolução contra ordem’, mas jamais os conteúdos e significados revolucionários do socialismo. Dizia ele num artigo publicado originalmente em 1990:

O PT permanece como a única alternativa para os que se identificam com o socialismo. Por enquanto, não há outro lugar para nós fora dele e, estou convicto, ele comprovará que veio para reduzir o capitalismo selvagem e a sociedade de classes correspondente a cacos. Não obstante, temos que enfrentar com coragem o calcanhar-de-aquiles do PT, para não repetirmos aqui a tragédia que esfrangalhou a social-democracia e o ‘socialismo democrático’, através de uma senilidade precoce. Não há socialismo sem democracia da maioria e, por suas transformações, democracia de todos para todos. Esse era e deverá ser, sempre, o roteiro ideológico e político do PT. Ou, então, ele se converterá em um ‘sonho perdido’ (‘A força do argumento’. UFSCar, 1998, p. 180).

Um sonho da imprensa

Se, como afirma o antiesquerdista Olavo de Carvalho (‘Obstinados no erro’. O Globo, Opinião, p. 7, 12/2/2005), ‘o realismo de uma análise política se mede pela sua eficácia em prever o curso dos acontecimentos’, podemos considerar como proféticas as seguintes palavras de Florestan, publicadas originalmente em 1989, se levarmos em conta o curso dos acontecimentos que permeiam o atual governo petista:

Não faço parte daqueles que acham que o marxismo está morto, mas que o marxismo precisa se definir. Em todas as revoluções ele se redefiniu e não poderia ser revolucionário se assim não o fizesse, o que não significa ‘rever’ o marxismo (ou ser revisionista), e sim pôr toda uma filosofia política dentro de um contexto histórico concreto. Quanto ao PT, existem dentro dele várias tendências e a sua riqueza reside na confiança que conseguiu despertar nas massas trabalhadoras – primeiro em algumas cidades e, em seguida, numa extensão mais ampla da sociedade brasileira, inclusive no campo. Agora, se o PT ficar numa posição não socialista, não fará sequer uma revolução dentro da ordem, será apenas instrumental para essa modernização dirigida a partir de fora e de cima! (Democracia e desenvolvimento. Hucitec, 1994, p. 172).

A perpetuação da política econômica do governo anterior pelo atual parece mesmo não ser uma ação tática e sim uma adesão estratégica à ‘articulação negociada’ dos adeptos da social-democracia brasileira que, numa opinião de Florestan sobre o então governo de Fernando Henrique Cardoso, não pode cumprir seu fetiche de ser um ‘Cavalo-de-Tróia’ das nossas elites, de poder ‘cozinhar os privilegiados dentro de seu próprio caldo de privilégios’ (‘Experimentum crucis’. Folha de S.Paulo, Opinião, 16/1/1995). Assim, o fortalecimento do ideário neoliberal eichmannomista, para citarmos a contribuição provocativa de Ward Churchill (‘Comparação de vítimas do terror com líder nazista causa debate acadêmico’. O Globo, O Mundo, p. 29, 12/02/2005), não corre nenhum risco de combate como parece supor o colunista político Merval Pereira (‘Lavagem de votos’. O Globo, O País, 9/1/2005) – que, vale ressaltar, aplaude o ‘estelionato eleitoral’ de Lula sobre a esquerda em 2002 (pelo seu ‘agradável’ amadurecimento), mas toma como ‘absurda’ (no sentido de inaceitável) um estelionato sobre a direita em 2006 (ou seja, o ressurgimento do ‘verdadeiro PT’).

Na verdade, o exercício estilístico do ilustre jornalista ilustra bem a forma com que a imprensa burguesa vem não só defendendo seus interesses diretos (fato retratado em ‘Todos os súditos da Globo’. Carta Capital, Capa, Ano XI, nº 326, 26/1/2005), como também moldando as políticas públicas ao bel-prazer de seus aliados capitais (cujo melhor exemplo talvez seja ‘O PT deixou o Brasil mais burro?’. Veja, Capa, edição 1889, ano 38, nº 4, 26/1/2005). E é justamente num sofisticado sistema de ‘fritura’ que a imprensa, articulada com seus parceiros, vem podando os galhos mais progressistas do governo Lula, aqueles que – em variados graus – desafiam os mandamentos postos no tronco e na raiz da ortodoxia econômica. O esquema, segundo Elio Gaspari (‘Mantega na fritura’. O Globo, O País, p. 14, 13/2/2005), funciona assim:

1) Juntam-se opiniões de pessoas qualificadas condenando uma determinada política como asnática… 2) Somam-se observações de técnicos internacionais, de preferência do FMI, na mesma direção. Obtido o verniz intelectual-cosmopolita vai-se à última etapa e cria-se uma simulação de confronto. Armado o choque interministerial ou disciplinar, o presidente da República, constrangido, frita seu aliado.

A esquerda com a qual se goza

Mas, é preciso lembrar, de novo com Florestan – num artigo escrito sobre a nomeação do então senador Fernando Henrique Cardoso para o Ministério da Fazenda – que ‘o determinante, no caso, não é o ministro [nem a imprensa, per si], porém, as estruturas, ritmos e funções de dada economia sob o impacto do mercado mundial’ (‘A força do argumento’. UFSCar, 1998, p. 216).

Ao abdicar de ser um instrumento de fortalecimento do processo de conscientização política do proletariado, o PT optou por guarnecer o padrão midiático que ‘corta a realidade pelas aparências dos fatos e do discurso’ e, assim, promove, em vez do rompimento do ‘horizonte intelectual burguês’, a desideologização da linguagem e, por conseqüência, o ‘mundo mental da plastificação cuidadosa e bem servida’ (A transição prolongada, Cortez, 1990, p. 55). Atualizando a piada do brizolista Darcy Ribeiro, o PT no governo, pelo menos até agora, deixou de ser ‘a esquerda que a direita gosta’ para se tornar a esquerda com a qual ela goza, cada vez mais, de riqueza e poder. Especialmente o oligopólio da indústria midiática que domina o nosso imaginário social. E que, vale lembrar, pouco foi atacada programaticamente pelo PT em todos esses anos – ao contrário do que fazia o líder político do antropólogo citado.

Para nós, de uma sociedade cada vez mais egoísta e hedonista, com base numa ‘ordem social competitiva’ extremamente injusta porém ‘natural’ – que toma, por exemplo, como banalidade o fato de uma filha de ministro gastar R$ 3 mil mensais em produtos de beleza (‘O preço da beleza’. Revista O Globo, ano 1, nº 29, p. 8-10, 13/2/2005) e uma família de classe média ‘investir’, também por mês, R$ 500 em sua cadela (‘Bichinho de estimação move um PIB animal’. O Globo, Economia, p. 32, 13/2/2005), enquanto parcela imensa da população pena na informalidade e outra, no mercado formal, tem pisos salariais espúrios, ambas sem acesso aos direitos humanos mais básicos –, os valores e os significados expressos pelo texto florestânico, num primeiro momento, podem parecer nada mais do que alienígenas, deslocados e fora de contexto.

Na história, a resposta

No entanto, sua radicalidade e seu efeito de desconforto me parecem ainda fundamentais para que tenhamos condições de fazer uma necessária crítica dos fatos e da informação que consumimos e, assim, combatermos o sistema de fabricação de notícias que engendra ‘o ilusionismo da cultura comercial de massas’ (A contestação necessária. Ática, 1995, p. 167). A começar, entender que o atual governo não representa o ‘abismo entre o sonho militante do socialismo democrático e reformista e o exercício do poder’ (‘Aniversário no poder’. O Globo, O País, p. 3, 13/02/2005). Como indicam as reflexões de Florestan durante sua vida partidária, a transmutação do PT num ‘partido da ordem’ (protótipo do nosso tradicional ‘mudancismo de conciliação conservadora’) não é um fenômeno novo, mas produto das lutas entre as tendências que o fundaram e o formaram nesses 25 anos.

O PT não mudou quando chegou ao poder. O PT mudou para chegar ao poder. Analisando as eleições presidenciais de 1994, Florestan afirmava, num artigo chamado ‘O limite da ingenuidade’, que ‘onde Collor falhou, Fernando Henrique Cardoso encontra amplas possibilidades de êxito, renovando e fortalecendo o monopólio do poder das ‘elites tradicionais’’ (Folha de S. Paulo, Opinião, p.2, 8/8/1994).

Lula dará continuidade a este processo? Ou estará fazendo de todos nós, da direita à esquerda, de ingênuos? A história está com a resposta.

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Jornalista, cientista político e doutorando em Educação Brasileira pela Universidade Federal Fluminense; autor de O desenvolvimento da ação sindical do ensino privado brasileiro (Preal/FGV-RJ, 2001)