Tuesday, 26 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Fora do Eixo virou um problema para a Mídia Ninja

A Mídia Ninja tem uma questão de ordem para resolver e ela se chama Fora do Eixo. Há dois dias, o coletivo comandado por Pablo Capilé, que financia os ninjas, foi acusado pela cineasta Beatriz Seigner de uma série de malfeitos num post longo e indignado no Facebook. Beatriz afirma ter trabalhado com o grupo por um ano. Fala em “trabalho escravo”. Alguns pontos de seu depoimento, entre aspas:

>> “Recebi um contrato do Sesc e vi que o Fora do Eixo estava recebendo por aquela sessão [de exibição de seu filme, com espaço para debates] em meu nome e não haviam me consultado sobre aquilo. Assinei o contrato minutos antes da exibição e cobrei do Fora do Eixo aquele valor, descrito ali como sendo meu cachê, coisa que eles me repassaram mais de nove meses depois porque os cobrei publicamente”.

>> “Me levaram para jantar na casa da diretora de marketing da Vale do Rio Doce, no Rio de Janeiro, onde falavam dos números fabulosos (e sempre superfaturados) da quantidade de pessoas que estavam comparecendo às sessões dos filmes, aos festivais de música, e do poder do Fora do Eixo em articular todas aquelas pessoas em todas estas cidades. Falavam do público que compareciam a estas exibições e espetáculos como sendo filiados a eles. Ou como se eles tivessem qualquer poder sobre este público”.

>> “Ele [Pablo Capilé] era contra pagar cachês aos artistas, pois se pagasse valorizaria a atividade dos mesmos e incentivaria a pessoa ‘lá na ponta’ da rede, como eles dizem, a serem artistas e não ‘DUTO’ como ele precisava. Eu perguntei o que ele queria dizer com “duto”, ele falou sem a menor cerimônia: “duto, os canos por onde passam o esgoto”.

>> “Quem mora nas casas Fora do Eixo, abdica de salários por meses e anos, e portanto não tem um centavo ou fundo de garantia para sair da rede. Também não adquirem portfólio de produção, uma vez que não assinaram nada do que fizeram lá dentro – nem fotos, nem cartazes, nem sites, nem textos, nem vídeos. E, portanto, acabam se submetendo àquela situação de escravidão (pós)moderna, simplesmente pois não vêem como sobreviver da produção e circulação artística, fora da rede. Muitas destas pessoas são incentivadas pelo próprio Pablo Capilé a abandonar suas faculdades para se dedicarem integralmente ao Fora do Eixo. Quanto menos autonomia intelectual e financeira estas pessoas tiverem, melhor para ele.”

O que faz a diferença

A denúncia tornou-se viral. Beatriz não está sozinha em suas críticas. Bem ao contrário. Diversos artistas que tiveram relação com o FdE têm reclamações no mesmo teor. Basicamente, a queixa é a seguinte: o Fora do Eixo não acha que deva pagar o artista — mesmo captando recursos públicos. Ou paga apenas alguns deles, como o rapper Criolo. Para ficar em apenas um caso, a cantora Malu Aires, paulistana que mora em Belo Horizonte, diz que o FdE “desinformou a cena, desestruturou o mercado oferecendo mercadoria de graça, explorou a produção artística para arrecadação de verba pública, criou a ideia de que artista bom é artista solidário e disse para as bandas que a música que elas criam não vale nem o download, nem a execução”.

(Há dois sites dedicados a descascar o FdE: o Dossiê Fora do Eixo e uma página do Tumblr chamada Fora do Beiço. O primeiro reúne teses, denúncias e reportagens e o segundo é de humor. Aliás, divertidíssimo)

O FdE se define assim: “uma rede de trabalhos concebida por produtores culturais das regiões centro-oeste, norte e sul no final de 2005. Começou com uma parceria entre produtores das cidades de Cuiabá (MT), Rio Branco (AC), Uberlândia (MG) e Londrina (PR), que queriam estimular a circulação de bandas, o intercâmbio de tecnologia de produção e o escoamento de produtos nesta rota desde então batizada de ‘Circuito Fora do Eixo’”.

Na prática, é uma cooperativa de pequenos produtores de eventos. De acordo com Capilé, graças ao empreendimento que ele bolou, 30 mil artistas conseguem sobreviver de sua música. Os shows que eles organizam têm ingressos a preços baixos. Eventualmente, são gratuitos.

Segundo a Folha, o Fora do Eixo captou cerca de 12 milhões de reais de verbas do governo entre 2010 e 2012. No que isso é aplicado? Aí entra uma engenharia complexa que, aparentemente, só Capilé domina. Sua peroração no Roda Viva deixou todo mundo confuso. O próprio Torturra, da Mídia Ninja, admitiu em sua resposta para Beatriz, publicada noFacebook: “Não entendi exatamente e até hoje luto para entender como funciona a economia pulverizada do FdE. Como uma moeda complementar se tornou o verdadeiro lastro de uma rede enorme.”

Para Bruno, os artistas devem ser “até tolerantes ao calote”: “A leitura dela e de muita gente sobre o FdE não revela tanto sobre a rede quanto sobre a própria mentalidade automática à qual o FdE tenta resistir. Onde a ‘integridade’, como ela cobrou da rede, é medida sobretudo por grana, ego, logotipos. Mais ligada a uma dinâmica econômica do que um real compromisso com a transformação e com a tolerância ao erro, ao vacilo, até ao calote que um processo tão sério como esse pode, e vai, gerar.”

A transparência do Fora do Eixo vai fazer toda a diferença para a causa. Sem ela, Capilé pode um dia ter manifestantes acampados em frente à sua casa. Se a Mídia Ninja vai cobrir são outros quinhentos.

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Kiko Nogueira é jornalista, diretor-adjunto do Diário do Centro do Mundo