Wednesday, 25 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

GloboNews e a “visão de cobertura”

Depois do caos que se instalou em algumas cidades inglesas, ficou ainda mais visível o lado estreito da “visão de cobertura” de parte significativa dos nossos jornalistas. O que chamo de “visão de cobertura” é aquela que sentencia a pluralidade do mundo a partir de uma análise tacanha, caolha, reflexo de um mundo visto de cima e que revela certo descolamento da realidade lá de baixo.

Na matéria da GloboNews, três jornalistas forçaram a barra para introjetar na fala do entrevistado (o sociólogo Silvio Caccia Bava) as próprias vulgaridades que carregam nas suas “cabeças de cobertura”, que simplesmente não conseguem enxergar a insatisfação das classes baixas da Inglaterra, sem que para isso taxe todos esses jovens (em sua maioria, negros e pobres) de “marginais”.

O primeiro jornalista começa a entrevista:

“Ô Silvio, como a gente vê nessas imagens, me parece que o estopim foi o protesto contra a morte do jovem nesse tiroteio com a polícia. Mas o contexto social parece ter perdido o fundamento nessas manifestações. O que está acontecendo, agora, na sua visão, é que pessoas e jovens estariam aproveitando o caos para praticar crimes?”

“Não, eu não vejo assim”, inicia o entrevistado, que precisou rebater os entrevistadores durante toda a entrevista.

“Como é que fica a sociedade?”

Depois do terceiro minuto, uma segunda jornalista pergunta ao entrevistado:

“Acho que o que impressiona o mundo todo nesse conflito é o grande número desses jovens e a violência toda. Se eles não são marginais,como você está falando, quem são esses jovens? São estudantes que estavam de férias e seguiram o fluxo da violência?”

“Não…”

Quem são esses jovens? São estudantes que estavam de férias...” Ou seja, pode-se traduzir a “visão de cobertura” no discurso da jornalista da seguinte forma: ou esses jovens são marginais, ou são vagabundos sem nada o que fazer. Esta é a sentença que não cabe recurso. Depois do quarto minuto do vídeo, a coisa vai ainda mais longe. Outra jornalista expõe sua “visão de cobertura”. Ela pergunta o seguinte:

“Silvio, você coloca aí: `Não é, não são marginais´, né? Mas eles estão cometendo crimes e é preciso agir contra esses crimes. Quer dizer, como que a polícia ou o governo vai agir diante de uma população que está fazendo uma, promovendo um quebra-quebra desses, mas ao mesmo tempo não são `marginais´, e sim, jovens que estão revoltados com a situação? Quer dizer, como é que fica a sociedade nesse momento, pois é muito angustiante você ver pessoas de bem promovendo ataques como esse, né?”

“Basta matar todos os pobres”

“Você também chamaria de marginais os 100 mil jovens estudantes do Chile que se enfrentaram ontem com a polícia?”, questiona, de pronto o sociólogo.

Um trecho da fala da jornalista é revelador dessa “visão de cobertura”. Quando ela enuncia “como é que fica a sociedade nesse momento…”, me pergunto: que sociedade será esta de que ela fala? Nota-se que nessa “visão de cobertura” (muito comum, por sinal, aqui no Brasil), existem duas sociedades – num tom claramente maniqueista: a boa e a ruim. A boa, no caso, é a própria “sociedade”. A ruim é aquela composta de marginais, os negros dos guetos, das periferias – e toda essa gente diferenciada que só existe para causar estorvo.

Daí, a pergunta da jornalista: “Como que a polícia ou o governo vai agir?”

A sugestão que eu faço para clarear essa “visão de cobertura” é a seguinte: que o governo inglês chame rapidamente as forças armadas para bombardear as periferias de Londres e as cidades que estão em caos…

Quem sabe, assim não se aplica, de uma vez por todas, aquela velha máxima que diz: “Para se acabar com a pobreza no mundo é simples: basta matar todos os pobres.”

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Link da entrevistacom o sociólogo Silvio Caccia Bava, no YouTube.

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[André Raboni é historiador e blogueiro]