Monday, 23 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

Intelectuais judeus franceses e o muro da incompreensão

Sempre que as tensões da guerra e dos massacres esquentam o Oriente Médio, a França vê subir a temperatura dos debates entre intelectuais judeus franceses, que travam uma verdadeira batalha de ideias por meio dos grandes jornais, de esquerda e de direita.

Observadores do debate político constatam uma progressiva direitização da opinião judaica tanto em Israel quanto na França e no mundo todo. Mas os intelectuais judeus de esquerda não deixam de tomar a pena para defender o direito internacional e acusar seus pares de má-fé e imobilismo em meio a um silêncio ensurdecedor, ou mesmo de compactuar com “crimes de guerra”.

Um grupo de neoconservadores que vieram da esquerda – entre eles os filósofos Alain Finkielkraut, Bernard-Henri Lévy e André Gluksman – costuma se agitar e monopolizar a mídia francesa: são vistos em todos os debates na TV, nas emissoras de rádio e assinam artigos (“tribunes”) nos grandes jornais para defender de forma acrítica as posições oficiais do governo de Israel, por mais indefensáveis que sejam diante do direito internacional.

Violência constante

Entre os intelectuais judeus que se mantêm críticos do alinhamento automático com Israel, alguns como Stéphane Hessel (que morreu no ano passado), Edgar Morin, Eric Hazan, Rony Brauman e Etienne Balibar, entre muitos outros, costumam tomar a palavra em artigos e entrevistas para defender pontos de vista que levam em conta, acima de tudo, as resoluções da ONU e o direito internacional, tripudiado ano a ano pelas implantações de colonos na Cisjordânia e em Jerusalém Oriental, tornando o projeto de um Estado Palestino – previsto na Resolução 181 – uma miragem cada vez mais distante.

Essa nova agressão de Israel ao gueto palestino de Gaza, que a imprensa internacional teima em chamar de guerra, trouxe novos confrontos, típicos do panorama intelectual francês, que teve no “affaire Dreyfus” um marco.

Um dos textos mais brilhantes foi produzido pelo filósofo Daniel Salvatore Schiffer, que escreveu uma “Carta aberta de um intelectual judeu a seus pares”. Os pares a quem ele se dirigia foram nomeados no título do texto “Lettre ouverte d'un intellectuel juif à ses pairs – Alain Finkielkraut, André Glucksmann, Bernard-Henri Lévy, Elie Wiesel”. Ele explicou que queria denunciar o “silêncio ensurdecedor” de seus pares, quando Israel estava cometendo “em total impunidade, um massacre na Faixa de Gaza, contra milhares de civis inocentes”.

Em seu texto, Schiffer se espanta que os intelectuais a quem se dirige, implacáveis quando se escandalizam diante de injustiças no mundo, como o cerco de Sarajevo pelos sérvios, não denunciem os bombardeios israelenses sobre civis palestinos. Salvatore Schiffer chega a comparar a estreita e superpopulosa Faixa de Gaza “ao gueto de Varsóvia, de sinistra memória”.

O negacionismo tão condenado pelos judeus franceses (quando se trata de negar o holocausto – “la Shoah” no francês atual, a partir do hebraico –, os fornos crematórios e as câmaras de gás nazistas) se repete hoje em relação aos palestinos. Ele aponta como má-fé dos intelectuais judeus a quem se dirige o fato de negarem, como Israel, o direito dos palestinos a um Estado e à existência como povo livre. E isso há mais de 65 anos.

Todas as graves questões relativas à moral e ao direito internacional levantadas por Schiffer interpelando diretamente seus pares não ficaram sem resposta. Entre os nomeados, o mais engajado na linha pró-Israel, o filósofo Alain Fienkelkraut, respondeu no jornal Le Figaro, em entrevista alentada, sem citar o nome do filósofo que o provocara.

A réplica mereceu de Daniel Salvatore Schiffer uma tréplica. No seu novo texto, Schiffer chama a entrevista de “miserável manipulação jornalística misturada a uma incrível covardia, tanto da parte do jornal Le Figaro quando de Finkelkraut”.

Tratado de “traidor”, Schiffer viu que sua compaixão para com os palestinos parece insuportável a quem na sua ira passional chega a compará-lo ao “diabo”.

“Tão grotesca quanto iníqua, essa reflexão de Finkielkraut, que nos últimos tempos flerta perigosamente com as teses nauseabundas do Front National [partido político de extrema-direita]! Tenho dificuldade em imaginar como uma instituição tão prestigiosa como a Academia Francesa pôde acolher essa caricatura de filósofo”, escreveu Schiffer.

“Nada pode justificar essa carnificina. Da parte de Israel que deveria ser um exemplo para a humanidade, ela é inadmissível no plano humano. Esse crime, repreensível no nível moral, se assemelha, mesmo que lhe seja difícil admitir, a um ‘crime de guerra           ou ‘crime contra a humanidade’. Israel não é digno nessa circunstância mortífera, de sua História”.

“Será que os judeus, por meio de não sei que privilégio, teriam o monopólio dos guetos e, da mesma forma, teriam a exclusividade do genocídio sobre a Terra? Teria sido ele ‘eleito’ para o pior?”, pergunta Schiffer.

Os dois primorosos textos de Schiffer merecem uma leitura atenta. O filósofo analisa as violências religiosas que são frequentemente perpetradas em nome de Yahvé ou de Alá para concluir que prefere crer que Deus não existe. E enquanto intelectual judeu laico e agnóstico conclui, como Shelley, pela necessidade do ateísmo.

Política digna

Na edição do Le Monde datada de terça-feira , 5 de agosto, foi a vez do filósofo e sociólogo Edgar Morin e do ex-presidente de Médecins Sans Frontières, Rony Brauman (ambos judeus), assinarem a oito mãos um artigo com o filósofo Régis Debray e com Christiane Hessel, viúva do grande Stéphane Hessel, este também um intelectual de origem judaica que não se cansou de denunciar a ocupação e o massacre dos palestinos. O texto era dirigido ao presidente da República francesa e o título era “François Hollande, o senhor é responsável por uma certa ideia da França que está em jogo em Gaza”.

Em um magnífico texto também dirigido a François Hollande, o maior jornalista francês, Edwy Plenel, criador do jornal online Médiapart, citou Edgar Morin como um dos intelectuais judeus que foram vítimas de “cabalas caluniosas por sua justa crítica à cegueira israelense”. Escreveu Plenel: “Morin, como Stéphane Hessel, encarna essa esquerda que não cede em seus princípios e seus valores, não hesitando em pensar contra ela mesma e contra o seus, evitando a armadilha de se alinhar a uma origem ou pertencimento”.

O artigo dirigido a Hollande e assinado por Morin, Brauman, Debray e Christiane Hessel merece ser lido com a máxima atenção. Justo da primeira à última linha, nele os signatários interpelam o presidente e seu alinhamento imediato à uma invasão de Gaza por Israel, que chocou a todos os que, como o ex-chanceler e ex-primeiro-ministro Dominique de Villepin, agiram por uma diplomacia justa e independente no “país dos direitos humanos”.

“A anexação da Criméia russófona desencadeia indignação e sanções. A anexação da Jerusalém que fala o árabe nos deixaria impávidos? Pode-se condenar Putin e absolver Netanyahu? Dois pesos e duas medidas?”, perguntam Morin, Debray, Brauman e Hessel.

O texto assinado pelos quatro intelectuais continua dizendo que “pode-se lamentar a morte de militares durante uma operação guerreira, mas quando as vítimas são mulheres e crianças sem defesa que não têm mais água para beber, que não são ocupantes mas vítimas da ocupação, que não são invasores mas foram invadidos, não é o caso de se implorar mas de se impor o respeito ao direito internacional”.

Um país como a França não está condenado a ter uma diplomacia digna de George W. Bush nos piores tempos.

François Hollande, que se apressou a apresentar solidariedade a Israel logo depois da invasão de Gaza, deve responder aos intelectuais que o questionaram com uma política externa digna da França, que sempre se orgulhou do epíteto de “país dos direitos humanos”. No mínimo, dando declarações de princípios dignas de uma diplomacia independente.

Talvez seja muito esperar que ele suspenda a cooperação de empresas francesas com Israel em projetos nos territórios ocupados, como o dos bondes (tramway) em Jerusalém Leste.

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Leneide Duarte-Plon é jornalista, em Paris