Sunday, 22 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

Linguagem e delírio autoritário

Notícia publicada no Globo de sábado (29/4) é estarrecedora [veja íntegra abaixo]. Estamos ingressando numa era totalitária, em que o governo dá o primeiro passo para instituir uma nova língua e baixar normas sobre as palavras que devemos usar? Será proibido em breve o uso de palavrões na língua falada no Brasil? Serão eliminados dos dicionários vocábulos e expressões não considerados apropriados pelo governo? Palavras veneráveis da língua, como ‘beata’, em qualquer sentido, deverão ser banidas? Será criada uma polícia da linguagem? Os brasileiros serão proibidos por lei de discutir vigorosamente e xingar os interlocutores?

Que autoridade tem essa secretaria [Especial dos Direitos Humanos] para emitir essas opiniões, que por enquanto podem ser apenas opiniões, mas nada impede, na ditadura mal disfarçada em que vivemos, que uma medida provisória, da mesma forma com que já nos confiscaram a poupança e os depósitos bancários, venha a ser baixada, confiscando também a nossa língua e os nossos costumes, mesmo os inaceitáveis pela maioria?

Os escritores e jornalistas terão seus livros e textos examinados, para que se expurguem termos ou expressões condenadas? Contar piadas será tido como conduta anti-social e discriminatória? O governo é o dono da língua? As palavras ‘negro’, ‘preto’, ‘escuro’ e semelhantes, nos casos em que não estiverem sendo usadas sem relação alguma com a cor da pele de ninguém, serão vedadas, se em qualquer contexto julgado negativo? As nuvens de chuva por acaso são brancas e alguém está insultando os negros, quando diz que há nuvens negras no horizonte (e há)? Os túneis são escuros e existe alusão racial na expressão ‘luz no fundo do túnel’? A peste bubônica não poderá mais ser mencionada como a ‘peste negra’?

Tratar-se-á como injúria ou difamação chamar de comunista alguém que até o seja, mas não se considere como tal? Não se poderá mais dizer que alguém é burro ou cometeu uma burrice? Será publicada uma lista de palavras de uso permitido, ou de uso proibido? Acontece isto em alguma outra parte do mundo? Se um homossexual, como fazem muitos deles, rotular-se a si mesmo de ‘veado’, poderá ser censurado ou punido? O pronome indefinido peculiar à língua falada no Brasil (‘nêgo’, como em ‘nêgo aqui gosta muito de uma festa’) só será aceitável se for numa afirmação elogiosa ou ‘positiva’?

Ovinos imbecis

O ridículo dessa cartilha não nos deve cegar para o fato de que está começando o que parece ser uma ampla distribuição, que certamente atingirá as escolas, as quais, já hoje, são obrigadas a classificar racialmente os alunos, dando a entender que certas áreas certamente considerarão um progresso e um passo em direção ao ambicionado terceiro mundo a instituição da segregação no Brasil.

Não podemos aceitar esse delírio totalitário, autoritário, preconceituoso (ele, sim), asnático, deletério e potencialmente destrutivo – e, o que é pior, custeado com o nosso dinheiro. Que está acontecendo neste país? Aonde vamos, nesse passo? Quanto tempo falta para que os burocratas desocupados que incham a máquina governamental regulem nossa conduta sexual doméstica ou nosso uso de instalações sanitárias?

Enfim, o que é isso, pelo amor de Deus? Até quando vamos suportar sermos tratados como um povo de ovinos imbecis e submetidos ao jugo incontestável da ‘autoridade’? Todo poder emana do povo ou da burocracia? Podemos ser processados se chamarmos um membro do serviço público de ‘funcionário’? Temos liberdade para alguma coisa? Foi o Estado que nos concedeu o direito de pensar, opinar e dizer, ou este é um direito básico e inalienável, que não nos pode ser tirado?

Exijamos respeito

Não sei mais o que dizer sobre esse descalabro, esse escândalo, essa vergonha, esse sinal de atraso monstruoso, que de agora em diante não deverei mais poder chamar de palhaçada, para não insultar os palhaços. Até onde vamos regredir? É preciso que reajamos, é indispensável que os homens responsáveis por tal despautério sejam dispensados do serviço público, porque lá estão para cometer atentados à liberdade e arbitrariedades desse tipo. É indispensável que assumamos nosso papel de cidadãos detentores da soberania que, pelo menos nominalmente, é entre nós a soberania popular.

Chega de burrice, chega de abuso, chega de incompetência, chega de merda jogada sobre nossas cabeças! Ou então que nos calemos e vivamos o destino de gado a que forcejam para cada vez mais nos impor, a escolha é nossa e essa iniciativa grotesca e idiota seja imediatamente esmagada, ou em breve não teremos direito a mais nada, nem à nossa língua, aos nossos sentimentos e à escolha de nosso comportamento que, não sendo criminoso, é exclusivamente da nossa conta e de mais ninguém.

Não podemos ser mais humilhados e envergonhados dessa forma, exijamos respeito e seriedade, defendamos nossa integridade e dignidade, rebelemo-nos e, sim, xinguemos – bons filhos das putas – ou, melhor, bons rebentos de profissionais femininas do sexo, para respeitar as novas diretrizes. Vão se catar, e não às nossas custas, como vêm fazendo até agora. Desculpem, mas eu não posso conter a indignação e tentar passá-la para tantos compatriotas quanto possível. Saudações democráticas, revoltadas e dispostas a se tornarem revoltosas, de João Ubaldo Ribeiro.

Quando é de bom-tom evitar palhaço e baianada

Evandro Éboli (O Globo, 30/4/05)

BRASÍLIA. Com o objetivo de chamar a atenção da sociedade para os ‘preconceitos nossos de cada dia’, a Secretaria especial dos Direitos Humanos elaborou e está distribuindo a cartilha ‘Politicamente correto’. A publicação reúne 96 palavras, expressões e piadas consideradas pejorativas e que revelam discriminações contra pessoas ou grupos sociais, como negros, mulheres, homossexuais, religiosos, pessoas portadoras de deficiência e prostitutas.

A cartilha foi distribuída esta semana a vereadores, deputados estaduais, militantes de organizações não-governamentais e pessoas envolvidas com políticas de direitos humanos, num seminário na Câmara.

Tiragem inicial da cartilha é de cinco mil exemplares

Na cartilha, foram incluídas expressões como ‘a coisa ficou preta’, ‘mulher no volante, perigo constante’ e palavras como branquelo, burro, aidético, sapatão, veado, bêbado, ladrão e até comunista. A publicação foi organizada pelo subsecretário de Promoção e Defesa dos Direitos Humanos, Perly Cipriano, num convênio com a Fundação Universitária de Brasília.

A tiragem é de cinco mil exemplares e o público-alvo inclui ainda policiais, jornalistas e professores. O texto foi elaborado pelo professor Antônio Carlos Queiroz, da Universidade de Brasília (UnB).

‘Todos nós utilizamos palavras, expressões e anedotas que, por serem tão populares e corriqueiras, passam por normais. Mas, na verdade, escondem preconceitos e discriminações contra pessoas ou grupos’, afirma Cipriano, na apresentação da cartilha.

O livro aponta como politicamente incorreto chamar as pessoas de palhaço e barbeiro, já que ofenderia os profissionais dessas categorias. No caso de barbeiro, diz a cartilha: ‘Usado no sentido de motorista inábil, é ofensiva ao profissional especializado em cortar cabelo e aparar a barba’.

Já a palavra palhaço não deveria ser usada porque os profissionais do ramo poderiam se ofender ‘quando alguém chama de palhaço uma terceira pessoa a quem se atribui pouca seriedade’.

Baianada é outra expressão condenada na cartilha

Baianada é outra expressão condenada, considerada pejorativa porque atribui aos baianos inabilidade no trânsito. Para a Secretaria de Direitos Humanos, a expressão ‘preto de alma branca’ é altamente racista e segregadora e um dos slogans mais terríveis do que chama de ideologia de branqueamento do país.

A palavra baitola, usada vulgarmente para referir-se a homossexuais, é apontada como depreciativa. A cartilha recomenda que se use as palavras gay ou entendido e entendida. O texto considera um insulto chamar de louco um portador de deficiência mental, expressão correta. ‘A palavra (louco) é usada também para reprimir pessoas que por razões políticas ou antiinstitucionais manifestam rebeldia’.

Perly Cipriano afirma que a cartilha não quer promover discriminação às avessas, mas sim incentivar o debate e a reflexão

A cartilha condena:

A COISA FICOU PRETA: forte conotação racista contra os negros, pois associa o preto a uma situação ruim.

AIDÉTICO: termo discriminador, o correto é HIV positivo ou soropositivo, para quem não apresenta os sintomas, e pessoa com Aids ou doente de Aids, para quem apresenta os sintomas.

ANÃO: são vítimas de um preconceito peculiar: o de sempre serem considerados engraçados. Não há nada especialmente engraçado. O fato de ser anão não afeta a dignidade.

BAIANADA: atribui aos baianos inabilidade no trânsito. É um preconceito de caráter regional e racial, como os que imputam malandragem aos cariocas, esperteza aos mineiros, falta de inteligência aos goianos e orientação homossexual aos gaúchos.

BAITOLA: utilizada para depreciar os homossexuais, assim como bicha e boiola. Sugeridos como corretos: gay e entendido (a).

BARBEIRO: xingamento para motorista inábil. Ofensiva ao profissional especializado em cortar cabelo e aparar a barba.

BEATA: deprecia mulheres que vão com muita freqüência à missa.

CABEÇA-CHATA: termo insultuoso e racista dirigido aos nordestinos, cearenses em especial.

COMUNISTA: contra eles foram inventadas calúnias e insultos, para justificar campanhas de perseguição que resultaram em assassinatos em massa, de caráter genocida, como durante o regime nazista na Alemanha.

FARINHA DO MESMO SACO: junto com expressões como todo político é ladrão, todo jornalista é mentiroso, os muçulmanos são terroristas, ilustra a falsidade e leviandade das generalizações apressadas, base de todos os preconceitos. O fato de haver políticos corruptos, jornalistas imprecisos e muçulmanos extremistas não significa que a totalidade desses segmentos mereça aquelas respectivas acusações.

FUNCIONÁRIO PÚBLICO: depois de sistemáticas campanhas de desprestígio contra o serviço público, os trabalhadores dos órgãos e empresas públicas preferem ser chamados de servidores públicos, para enfatizar que servem ao público mais do que ao Estado.

GILETE: o termo adequado é bissexual.

HOMOSSEXUALISMO: é mais adequado usar homossexualidade. Homossexualismo tem carga pejorativa ligada à crença de que a orientação homossexual seria uma doença, uma ideologia ou movimento político.

LADRÃO: termo aplicado a indivíduos pobres. Os ricos são preferencialmente chamados de corruptos, o que demonstra que até xingamentos tem viés classista.

MULHER DA VIDA OU DE VIDA FÁCIL: eufemismos para caracterizar a profissional do sexo, prostituta.

MULHER NO VOLANTE, PERIGO CONSTANTE: frase preconceituosa contra as mulheres, a quem se atribui menos habilidade no trânsito em comparação com os homens, contrariando, aliás, os levantamentos estatísticos.

NEGRO: a maioria dos militantes do movimento negro prefere este termo a preto. Mas em certas situações as duas expressões podem ser ofensivas. Em outras, podem denotar carinho nos diminutivos neguinho ou minha preta.

PALHAÇO: o profissional que vive de fazer as pessoas rirem pode se ofender quando alguém chama de palhaço uma terceira pessoa a quem se atribui pouca seriedade.

PRETO DE ALMA BRANCA: um dos slogans mais terríveis da ideologia do branqueamento no país, que atribui valor máximo à raça branca e mínimo aos negros. Frase altamente racista e segregadora.

SAPATÃO: usada para discriminar lésbicas,mulheres homossexuais. Entendidas e lésbicas são termos mais adequados.

VEADO: uma das referências mais comuns e preconceituosas aos homossexuais masculinos. Expressões adequadas são gay, entendido e homossexual.

XIITA: um dos ramos do Islamismo se tornou no Brasil termo pejorativo que caracteriza militantes políticos radicais e inflexíveis.

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Jornalista e escritor, membro da Academia Brasileira de Letras