Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Manda quem pode…

Neste 25 de março completa-se o primeiro mês sem a exibição via parabólicas dos programas da emissora cearense mais conhecida do país. Em mais de dez anos de funcionamento sob o controle do grupo Edson Queiroz, a retirada do sinal nacional da emissora foi o maior revés sofrido pela empresa, que vinha desenvolvendo uma política expansionista, alcançando outras regiões brasileiras e constituindo uma rede. E o golpe veio exatamente da mais importante parceira do grupo nos negócios em comunicações, a Rede Globo de Televisão.

Em outro lugar do cenário, uma série de bandeiras foi levantada em defesa da produção ‘regional’ (inclusive uma convocatória ao boicote da programação global), denunciando os desmandos do grupo carioca, que viria submetendo seus representantes locais à função de retransmissores do que é produzido ou autorizado no Sudeste. Quem perde com a retirada da TV Diário do sistema de transmissão aberto a todas as parabólicas? É preciso, para poder entrar nessa questão, entender antes a relação entre os dois grupos parceiros.

O Sistema Verdes Mares de Comunicação é o conjunto de empresas de mídia do grupo Edson Queiroz (conglomerado econômico com sede no Ceará, proprietário também das águas minerais Indaiá e Minalba, da indústria de eletrodomésticos Esmaltec, da Nacional Gás Butano, entre outras). Além de rádios no Ceará em no Recife, do jornal Diário do Nordeste e de um portal de internet, o sistema engloba duas emissoras de televisão. Fundada em 1970, a Televisão Verdes Mares funciona como afiliada da Rede Globo em Fortaleza desde 1974. Já a TV Diário (TV Capital Ltda.) foi adquirida somente em 1997 e buscou um mercado menos ‘generalista’, mais focado em um perfil de público definido como ‘nordestino’. Ou seja, ao contrário do que a TV Globo sugeriu ao público em sua nota de esclarecimento repassada à imprensa, a TV Diário não é uma afiliada da rede, mas uma concorrente.

Ameaça de rompimento de contrato

Quando perguntadas sobre esse emaranhado na jurisdição de comando de cada uma das empresas, a TV Globo e o Sistema Verdes Mares declaram que não acrescentam nada àquilo que já foi divulgado. De acordo com o publicado na imprensa, em sites que tematizam a mídia e em blogs, a TV Globo viria cobrando a redução na abrangência nacional da transmissão da TV Diário, que já atingia diversas regiões do Brasil, atendendo à diáspora nordestina espalhada pelo país com conteúdos de sua terra natal.

Que poder a Rede Globo tem, então, para influenciar as estratégias de mercado da TV Diário quando sua ‘afiliada’, na verdade, é a TV Verdes Mares? A resposta é conhecida do público de uma forma geral: a ameaça de desfazer – ou não renovar – o contrato com a ‘afiliada’ pertencente ao grupo Edson Queiroz. ‘Mas ela teria mesmo coragem de fazer isso?’, pergunta alguém menos afeito à crueldade do espírito empreendedor. ‘Ela já fez’, respondem os telespectadores da TV Aratu, na Bahia, e da TV Iguaçu, no Paraná. Embora os contextos fossem outros (as décadas de 1970 e 1980), são mínimos os obstáculos hoje para os desmandos das grandes empresas de mídia, quando não existem dispositivos regulatórios efetivos e os principais canais para a veiculação de uma crítica massiva encontram-se em suas mãos ou de seus parceiros.

Quando no mercado cearense ronda o espectro da TV Jangadeiro (afiliada do SBT), que vem se modernizando nos últimos tempos e que tem entre seus acionistas o rico e influente político/empresário Tasso Jereissati, fica difícil para o Sistema Verdes Mares não vislumbrar a possibilidade dos dividendos da TV Globo lhe escaparem das mãos. Num momento em que já foi anunciada a inauguração da TV Cariri, primeira emissora do grupo Edson Queiroz no interior, também afiliada à Rede Globo (por que não à TV Diário?), uma ameaça de rompimento de contrato talvez seja um golpe mais duro do que a imposição da ‘harmonia entre todos’ e do ‘respeito recíproco’ referida na nota já citada anteriormente.

Uma experiência nova

A estratégia utilizada em grande parte dos mercados hoje, principalmente naqueles em que há alta concentração e centralização de capital, é a de evitar levar a concorrência às suas últimas conseqüências, o que traria mais prejuízo aos negócios do que um acordo entre as partes interessadas. Assim, o Sistema Verdes Mares e a TV Globo medem suas forças e estabelecem a partir do poder persuasivo do fato consumado que o que é melhor para os negócios é melhor para o público.

Alguns apontam o abocanhamento da audiência e do mercado publicitário pela TV Diário e a perda de espaço da Rede Globo para as concorrentes, principalmente a TV Record, como possíveis causas do enrijecimento da política de parceria da empresa carioca (que aplicou à mesma imposição à Rede Amazônica de Rádio e Televisão e sua AmazonSat).

O certo é que o fato de grupos responsáveis por afiliadas da TV Globo se apresentarem como concorrentes reais no mercado nacional, mesmo com audiências pífias, é uma experiência nova e a primeira resposta dada a questão foi definida no âmbito das negociações entre empresários, sem consulta a parte importante dos interessados.

Estúdios desmontados e desemprego

Como resposta à suspensão do sinal nacional da TV Diário, muitas críticas foram dirigidas à Rede Globo, enfocando principalmente duas questões: a do monopólio do conteúdo e a da supressão da identidade nordestina na televisão – a não ser via seus atores cariocas e paulistas falando em ‘nordestês’.

A imagem vendida pela TV Diário desde o princípio de sua expansão é a de uma televisão que veio para mostrar o Nordeste e alimenta fortemente a imagem épica do conflito entre dois povos, um ‘nordestino’ contra um ‘sudestino’ com aspirações de nacional. O ápice do movimento dos inconformados foi a convocatória para um boicote à programação da TV Globo no último dia 13 de março, que, apesar da dificuldade para avaliar o grau de adesão, supomos não tenha conseguido atingir expressividade, devido à minguada repercussão.

O problema dos centros de produção televisiva locais remete, no Brasil, principalmente à década de 1970, quando esses locais perderam importância devido à conformação das grandes redes nacionais e das estruturas de telecomunicações. Promovidos pelos governos militares, dentro dos ditames de uma política de segurança nacional, os sistemas brasileiros de radiodifusão centralizaram o capital e o controle administrativo no Rio de Janeiro e São Paulo, desmontando os estúdios locais e desempregando parte considerável dos técnicos e artistas. Entretanto, são outros os marcos da disputa atual.

Tudo é decidido em gabinetes

A consolidação de pequenos mercados nos grandes centros urbanos brasileiros permite estratégias de atuação de empresas de comunicação locais que não disputem diretamente o mesmo público dos grupos mais fortes, embora de forma ainda incipiente. A TV Diário, como uma dessas empresas, encontrou a partir do discurso da nordestinidade um nicho a ser explorado, que dificilmente poderia ser incorporado com a mesma ‘legitimidade’ pela empresa carioca.

Porém, longe de representar a luta do regional contra o nacional (pois já tomava a forma de uma rede nacional como as demais, apesar de ainda estar restrita aos satélite e presa ao discurso da identidade nordestina), a TV Diário representa mais um espasmo do processo de reacomodação das empresas que vêm se desenvolvendo no mercado de comunicação desde o final da década de 1990 e promete novos movimentos polêmicos.

Longe de suprir a demanda real daqueles que deitam raízes no Nordeste e em todo Brasil por uma comunicação mais do que regional, mas democrática, participativa e plural, a briga da Rede Globo com a TV Diário é mais um capítulo da história da mídia no país em que tudo é decidido nos escritórios e gabinetes.

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Jornalista, doutorando em Sociologia, membro do Observatório da Mídia Regional da UFPE e autor da dissertação de mestrado ‘Sistema Verdes Mares de Comunicação e indústria cultural brasileira’