Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Mirando no ‘sniper’

Com a estreia no Brasil de Sniper Americano, a imprensa tem trazido uma parcela, mesmo que pequena, da polêmica que o último filme de Clint Eastwood vem causando mundo afora. E, claro, muitas das críticas cinematográficas de nossos jornais preferiram o caminho mais fácil ao discuti-lo somente através da análise técnica e fílmica. O “todo”, o mundo e o discurso no qual a narrativa está inserida tem sido deixado de lado ignorando o fato que, como em toda a mídia, com o discurso certo é possível criar heróis, inimigos, lendas. Até o injustificável passa a ter sentido. Ou passa despercebido.

Narceja é uma ave de cerca de 30 centímetros e bico longo que, por um desses azares da vida terrestre, virou o alvo preferido dos caçadores americanos, por exigir tiros de grande pontaria e precisão para ser abatida. Durante a Guerra Civil Americana, surgiu a ideia de eliminar os comandantes adversários à grande distância, impingindo temor e perda de referência à tropa inimiga. Para isso foram buscar os melhores atiradores: os caçadores de narcejas, ou “narcejeiros”. Entre os americanos, este pássaro tem outro nome: chamam-no de sniper.

Às vezes sniper, outras franco-atirador. Este último vem do francês “franc-tireur” literalmente “atirador livre”, nome dado durante a Guerra Franco-Prussiana (1870) aos civis que lutaram com suas armas de fogo contra o inimigo sem estarem sujeitos às regras da guerra. Como tal, Bradley Cooper empresta sua cara de bom moço a um personagem real no filme Sniper Americano, de Clint Eastwood: o texano Chris Kyle, sniper que matou oficialmente mais de 160 pessoas, número que chega a 255 se forem considerados os relatos de seus próprios colegas. Virou herói americano e, agora, sucesso de público. E por quê?

Como ele, outros snipers, cada qual em seu tempo, circunstâncias e países, também se tornaram heróis nacionais. Vassili Zaitsev, assim como Chris Kyle, aprendeu a atirar e caçar com o pai. Herói entre os russos, matou 242 invasores alemães durante a Batalha de Stalingrado, somando 468 até o final II Guerra Mundial. Também virou filme e foi interpretado por Jude Law em Círculo de Fogo (2001), de Jean-Jacques Annaud.

Bons e civilizados vs. maus e bárbaros

Um pouco antes da II Grande Guerra, mas ainda em 1939, outro sniper se consagrava herói: o finlandês Simo Häyhä matou 542 russos em três meses, momento em que a União Soviética invadia seu país. Não muito diferente de Chris Kyle, era só um fazendeiro desconhecido até então. Sobre as mortes, dizia ter feito “o que mandaram fazer, da melhor forma possível”.

Juba, franco-atirador iraquiano, não virou filme, mas uma lenda e um herói antiamericano famoso por seus vídeos, usados como propaganda da resistência iraquiana. Atuava junto a um cinegrafista e suas ações iam logo parar na internet. Não se sabe ainda ao certo se era uma única pessoa ou um grupo. Seus vídeos são distribuídos até hoje nos mercados de Bagdá e região e pela web. Na gravação mais famosa, diz ter nove balas em sua arma, as quais prometia dar de presente ao presidente George Bush e, em seguida, veem-se nove soldados americanos caindo um a um. No total, matou 156 e feriu outros 54. Após cada ação, deixava sempre o mesmo bilhete nos locais de onde atirava, justificando seu trabalho: “O que foi tirado em sangue não pode ser recuperado a não ser pelo sangue. O sniper de Bagdá.” Chris Kyle surgiu como a resposta norte-americana para Juba.

Talvez você se lembre de O Franco Atirador, de Michael Cimino, filme da década de 1970 com Robert De Niro, Christopher Walken (talvez em seu melhor momento no cinema) e Meryl Streep. Uma produção que tentou problematizar melhor esse personagem quase mítico nos conflitos, o soldado, através da manipulação patriótica que estes sofrem sem ao menos perceberem. Já o filme de Clint Eastwood prefere massagear o ego do Tio Sam numa ode ao próprio nacionalismo com seu olhar dicotômico: eles, bons e civilizados, versus os outros, maus e bárbaros.

Derrubado em solo pátrio

Em sua forma clássica, soldados parecem vestir como uma luva a máxima sobre o nacionalismo: a maneira mais fácil de odiar e ignorar pessoas e realidades que nada ou pouco conhece. Ao que parece, o mesmo perfil se estende a grande parte do público norte-americano, que transformou o filme em sucesso comercial e sai das salas de cinema meio como Chris Kyle, que em seu livro American sniper – a autobiografia do mais letal atirador da história militar americana, disse ter adorado “tudo o que fez” e se arrepende de “não ter feito mais”, encarando a morte alheia como um trabalho necessário. Como consequência, sua letalidade foi premiada, ganhando inúmeras condecorações e destaque na sociedade.

Sim, premiamos a letalidade. Abrimos o caminho para isso travando, na verdade, três guerras: a do discurso anterior, a qual serve para legitimar o seu início; a de fato, com todas as suas mortes e barbáries; e a do discurso posterior, orientada para justificar os atos executados durante conflito. No caso específico dos snipers, é a figura ímpar e solitária da resistência que fica em evidência e, também por isso, heroica. Somada à propaganda nacionalista, como o livro e o filme sobre Chris Kyle, ou os vídeos e histórias de Juba, o que vemos é o surgimento de heróis nacionais.

Em comum, talvez a todos eles, a ideia de que fazem o certo, o justo, o necessário, o melhor para os “seus” no cumprimento da ordem e do dever, alçando um discurso que toma para si a legitimidade daquilo que é mais valorizado na atividade humana: o sagrado. Troca-se a sacralidade da vida pela sacralidade do trabalho: o trabalho difícil, aquele que tem que ser feito, que tem sua feiura e falta de moral evidente escondidas pela necessidade das circunstâncias. “Alguém precisa fazer”, dizem. Um ato torto, mas embalado em papel de super herói para nós, infantilmente, comprarmos. Não por acaso, Sniper Americanoé sucesso de público e renda: é líder de bilheteria por semanas consecutivas nos Estados Unidos e embasa diversos tweets islamofóbicos.

Num artigo publicado no jornal O Globo em 2013, a documentarista  Dorrit Harazim definiu de maneira bem interessante o caso. “O atirador nº 1 da América morreu aos 38 anos, alvejado num campo de treinamento de tiro do Texas. Não foi abatido por ‘Juba’ nem por nenhum dos ‘iraquianos selvagens’ que combateu. Foi derrubado em solo pátrio por um americano. […] Chris Kyle morreu sem entender nada da guerra em que acredita ter triunfado.” Ao que parece, boa parte do público que sai das salas de cinema também.

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Alexandre Marini é sociólogo