Saturday, 16 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1314

O protegido dos deuses

O ministro chefe da Casa Civil, Antônio Palocci, não está "blindado" apenas pelo Palácio do Planalto, onde passa a maior parte do tempo no gabinete da presidente Dilma Rousseff. As forças sociais e políticas que o protegem não distinguem fronteiras partidárias, estão dos dois lados do "balcão" – governo e empresas – e contam com a compreensão de uma parte importante da mídia.

O tratamento recebido por Palocci, exceção feita à Folha de S.Paulo, foi, até aqui, mais do que equilibrado. Foi cauteloso. No limite, complacente: é o caso da reportagem publicada na Veja. Voltaremos a ela.

Nas colunas de opinião ou comentário – inexistentes atualmente na principal mídia do país, a TV Globo – não faltaram críticas e cobranças, mas o noticiário se ateve a fatos indesmentidos. A compra de dois imóveis no valor somado de R$ 7,5 milhões, o faturamento de R$ 20 milhões em um ano e de R$ 10 milhões em apenas dois meses desse ano não foram contestados pelo ministro Palocci ou por sua assessoria.

Coube à Folha o privilégio de fazer a primeira, a segunda e a terceira denúncias relevantes: "Palocci multiplica seu patrimônio em 20 anos" (15/5), "Empresa de Palocci faturou R$ 20 mi no ano da eleição" (20/5) e "Em 2 meses após a eleição, Palocci faturou R$ 10 mi". A primeira e mais contundente reportagem foi obra dos repórteres Andreza Matais e José Ernesto Credendio.

Informações não brotam no vácuo

Jornalisticamente, não faz muita diferença saber de onde partiram as primeiras pistas que levaram os repórteres a apurar o que o jornal noticiou. Uma reportagem sempre parte de alguma informação, de um aviso, de uma pauta. São muito raros os casos em que o repórter está andando pela rua e se depara com o fato que vira notícia. Jornalistas, por sinal, cada vez mais atarefados, não ficam flanando.

Duas entrevistas que mudaram o curso da história brasileira recente foram iniciativa dos entrevistados: Pedro Collor à Veja, em maio de 1992 ("O PC é o testa-de-ferro do Fernando"), e Roberto Jefferson à Folha, em junho de 2005 ("PT dava mesada de R$ 30 mil a parlamentares, diz Jefferson").

"Fogo amigo"

Politicamente, o ponto de partida faz diferença. Como se pôde ler na imprensa, diferentes círculos trabalharam com a hipótese do chamado "fogo amigo". A IstoÉ afirma, peremptória: "Segundo as apurações feitas pelo Planalto, as informações sobre a empresa de Palocci teriam chegado à imprensa por intermédio de pessoas ligadas ao PT de São Paulo".

Na quarta-feira (18/5), Vera Magalhães já havia abordado essa hipótese ao escrever na Folha:

"José Dirceu, sempre eloquente em seu blog pessoal, limitou-se a reproduzir declarações públicas sobre o episódio que fragiliza seu antípoda de sempre no PT.

"A parcimônia de declarações de apoio a Palocci fez aumentar na base aliada a sensação de que está de volta o fogo, nem tão amigo, que fustigou Palocci durante o primeiro mandato de Lula, quando cabia a ele ditar os rumos da economia.

"Nas palavras de um senador petista conhecedor antigo das rusgas no partido, ‘a balística do projétil que acertou o Palocci vai mostrar que a arma era do quartel’."

Conflitos internos, no governo ou no partido, não são novidade na trajetória de Palocci, como ele mesmo relata em seu livro Sobre formigas e cigarras, de 2007 (ver, neste Observatório, "As formigas e as cigarras do Palocci". A propósito do episódio em que a então chefe da Casa Civil, Dilma Rousseff, chamou de "rudimentar" a proposta de alongamento do esforço fiscal, em plena crise do mensalão e das denúncias sobre sua passagem pela prefeitura de Ribeirão Preto, Palocci escreve: "Não bastassem os ataques da oposição, agora o tiro de canhão vinha de dentro do próprio governo".

No site do PT, não se encontrava, até segunda-feira (23/5), nenhuma manifestação a respeito da súbita riqueza de Palocci.

Autodestruição

O maior inimigo do político Palocci, brilhante em tantas ocasiões, é na verdade uma das facetas do indivíduo Palocci. Um apartamento de R$ 6,6 milhões é uma extravagância, por mais aquecido que esteja o mercado imobiliário paulistano; pago em apenas duas prestações, é coisa de milionário. De quebra, um escritório de R$ 882 mil. Quem é esse Palocci tão distante de um comportamento que se possa classificar como republicano?

Transcorreram cinco dias úteis até o procurador-geral da República, Roberto Gurgel, considerar o caso merecedor de explicações, a serem providenciadas pelo ministro em no máximo duas semanas. Tempo mais do que suficiente para ele tranquilizar o mundo político e a nação com um sumário de atividades que justificassem o embolso dos R$ 7,5 milhões gastos na compra dos dois imóveis. Ele não o fez.

R$ 166.666,66 por dia

Mas havia fatos mais surpreendentes. Se Palocci, como noticiou a Folha − sem sofrer contestação até segunda-feira (23/5) −, recebeu R$ 10 milhões em dois meses, faça a conta, leitor. Dez milhões divididos por 60 dias dá uma dízima: R$ 166.666,66. É o faturamento médio diário da consultoria Projeto entre a vitória eleitoral de Dilma − em cuja campanha Palocci foi um dos três dirigentes máximos − e o início do novo governo.

A explicação dada para essa derrama de dinheiro é intrigante: devido ao fim iminente das atividades da Projeto, que se transformaria em administradora de imóveis – dos dois imóveis, para ser preciso −, houve antecipação de pagamentos. Por serviços que não mais seriam realizados, anotou Melchiades Filho na Folha.

Fim de semana ameno

Depois de uma nota da Casa Civil afirmar que "ex-ministro vale muito" no mercado, de uma completa obstrução a favor do ministro promovida no Congresso Nacional pelo governo, e da contratação da assessoria de imprensa FSB para ajudar Palocci a lidar com a crise de imagem, o embaraço governista persistiu. Foi sublinhado pela ida do ex-ministro da Secretaria de Comunicação Social, Franklin Martins, ao Palácio da Alvorada para uma reunião com a presidente Dilma, na quinta-feira (19/5).

Não se sabe o que Franklin recomendou ao governo, mas pode-se estabelecer, retrospectivamente, uma relação de causa e efeito entre a conversa do ex-ministro com a presidente e o que se viu em seguida: no fim de semana e na segunda-feira, o noticiário esfriou. Como se as preocupações do governo com seu próprio enfraquecimento tivessem sido compartilhadas pelos grandes veículos de comunicação.

As três principais revistas semanais – Veja, Época e IstoÉ − não deram o caso Palocci na capa. Na Folha de domingo (22), o ex-ministro Luiz Carlos Mendonça de Barros disse em entrevista: "A imprensa às vezes é injusta". Estadão e Globo não foram além do que já se conhecia. Quem fez grande estardalhaço, registrado aqui para mostrar que alas ligadas ao governo não chorariam a derrocada do chefe da Casa Civil, foi a CartaCapital, que publicou na capa uma foto de Palocci e o título: "Quem, eu? Sim, ele mesmo, Antônio Palocci, pego em flagrante". Em editorial, o diretor da revista, Mino Carta, estabelece paralelos entre Palocci, Silvio Berlusconi e Dominique Strauss-Khan, sob o título "O poder, quando corrompe".

Panorama visto da planície

Três desdobramentos úteis para a ampliação da democracia brasileira podem emanar da crise que colocou na linha de tiro a posição do chefe da Casa Civil. O primeiro é a demissão de Palocci, se for comprovada alguma ilegalidade cometida por ele no exercício de cargo público: cai o político, fica a República. A segunda é uma regulamentação dos lobbies: melhor haver alguma regra do que não haver nenhuma. A terceira, talvez a mais relevante (e a mais improvável), é que cresça a visibilidade das relações entre governos e empresas. Uma leitora da Folha resumiu brilhantemente a questão:

"O importante não é saber quanto Palocci enriqueceu com sua empresa de consultoria, mas saber quanto as empresas, suas clientes, enriqueceram com negócios ligados ao governo" (Cléa M. Corrêa, São Paulo, SP, 21/5).

Hoje, essas relações se escondem na opacidade, apesar dos repetidos escândalos trazidos à tona por reportagens, operações policiais, denúncias do Ministério Público, delações. Parecem abrigadas numa fortaleza impenetrável aos olhares do povo, que ganharia muito se ficasse sabendo como as coisas acontecem nas mais altas esferas, embora a vista não seja bonita. Como escreveu o professor Jeffrey Sachs (tradução publicada no Estadão em 8/5), "o dinheiro move montanhas e está corrompendo políticos em todo o mundo". (…) "Levando-se em consideração a proximidade entre o dinheiro, o poder e a lei, o combate ao crime corporativo será uma luta árdua".

Crime corporativo? Sim. Se tiver havido tráfico de influência, criminoso não será apenas o traficante. Serão também os beneficiários, nos dois lados do "balcão".

Palocci, o supremo

A matéria da Veja dedica seu primeiro e longo parágrafo a um encadeamento que começa bajulatório – "Antônio Palocci angariou tamanho respeito desde que apareceu do nada para ser ministro da Fazenda no primeiro governo Lula que fica difícil encontrar um exemplo histórico que ilustre essa situação excepcional" – e termina com um habeas corpus preventivo: "Palocci não deve ser investigado, mas deve uma explicação aos brasileiros".

O segundo parágrafo retoma o tom embasbacado do início: "Tão hábil, transparente, afável e conciliador na vida pública…" e repropõe a impunidade: "Se valer a vontade do mundo empresarial brasileiro, que Palocci conquistou por seu um raro elemento de racionalidade em Brasília, ele consegue se pôr de pé puxando os próprios cadarços dos sapatos". Agora, há explicitamente três vontade irmanadas: a do governo, a do "mundo empresarial brasileiro" e a da revista.

Respeitar o leitor

No desenvolvimento da matéria, a segunda e a terceira denúncia da Folha são omitidas. A revista só menciona o caso dos dois imóveis. O parágrafo final é uma sucessão de alegações de comportamento ético de Palocci, mas no final a Veja se enreda no conflito entre ser simpática às preocupações empresariais e sua natureza jornalística.

Dá uma informação nova. Palocci, usando dotes de "competente economista sem diploma" – nada a ver, portanto, com tráfico de influência ou inside information − "teria ajudado diversas empresas a desmontar suas arriscadas operações com os voláteis derivativos cambiais. A uma delas, com exposição de 250 milhões em derivativos, ele teria evitado um prejuízo de 5 bilhões". Reitera no último período sua reivindicação de excepcionalidade para Palocci – "É ruim quando um ministro da estatura de Palocci tem de dar explicações" −, mas termina enquadrada no respeito a sua excelência, o leitor: "péssimo mesmo é não dá-las e apostar que as nuvens negras se dissipem".

Sob assédio

O que se pode vislumbrar com segurança é o enfraquecimento do governo nas relações com sua voraz base de apoio, tema da reportagem da Época ("Eles vão ter que ceder. A revelação de que o ministro Antônio Palocci foi um próspero consultor de empresas obriga o governo a acelerar a nomeação de apadrinhados para cargos e expõe o Planalto ao assédio dos partidos aliados").

Aconteceu no contexto do mensalão. Lula, em troca do apoio do movimento sindical "nas ruas", se fosse preciso, negociou com as centrais, entre outras coisas, uma fórmula de reajuste do salário mínimo. Não foi generosidade, foi realismo. Agora, as principais negociações em curso no Congresso já estão contaminadas pelo "efeito Palocci" e a barragem contra nomeações ditas fisiológicas, que a presidente Dilma Rousseff pretendia filtrar com rigor, começa a exibir buracos. Poderão virar rombos.

Muito mais grave do que os contorcionismos de um governo para manter sua maioria no Legislativo é a capa de cinismo que desce sobre todas as relações sociais quando o poder dá o mau exemplo. Caso a imprensa se dobre diante das conveniências dos poderosos, pareçam ou não razoáveis ou "racionais", o país conhecerá processos amargos de descrença na democracia.

P.S. em 25 de maio

Contida a dinâmica da semana anterior, em vista do esmorecimento do noticiário, o governo e o PT procuram transformar o que é um caso de enriquecimento surpreendente em manobra política de adversários. O ex-presidente Lula, que já levantara a lebre, interveio publicamente para reforçar a nova dinâmica almejada.

P.S. em 26 de maio

No Valor de hoje, Cristiano Romero reitera a percepção de que Antônio Palocci foi vítima de "fogo amigo" e diz que, para o Palácio do Planalto, o enfraquecimento do ministro interessa mais a setores do PT do que a aliados (o PMDB estaria tendo um papel importante na defesa de Palocci). Esses setores, segundo Romero, "identificados com os grupos dos deputados João Paulo Cunha (SP) e Ricardo Berzoini (SP) e com o ex-ministro José Dirceu, teriam perdido espaço no governo com a eleição de Dilma. Ao formar sua equipe, a presidente diminuiu de forma sensível a presença de petistas ligados a esses grupos. Demitiu-os, por exemplo, da cúpula do Banco do Brasil e da Caixa Econômica Federal".