Saturday, 02 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1312

O tabloide sensacionalista e o telefone da menina morta

Nos últimos anos, o tabloide britânico News of the World­ foi protagonista em diversos escândalos envolvendo grampos telefônicos. O jornal dominical tinha um detetive particular que interceptava mensagens de figuras públicas, incluindo membros da família real.

Esta semana, mais um caso de grampo veio à tona; desta vez, as acusações contra o News of the World são ainda mais graves: o jornal teria grampeado o celular da adolescente Milly Dowler, brutalmente assassinada em março de 2002, e apagado mensagens de sua caixa postal. De acordo com uma investigação da Scotland Yard, poucos dias após o desaparecimento da menina de 13 anos, seu telefone foi grampeado e jornalistas teriam decidido apagar mensagens de voz da caixa postal, que estava lotada, para que pudessem ser recebidos novos recados. Desta forma, a família de Milly acreditou que ela continuva a usar o telefone e, portanto, estava viva.

A Scotland Yard descobriu que os telefones da família Dowler teriam sido alvo de grampo ao examinar as 11 mil páginas de anotações de Glenn Mulcaire, o detetive contratado pelo jornal. Mulcaire foi preso em 2007 junto com o editor Clive Goodman por interceptar mensagens dos príncipes William e Harry. Na ocasião, o editor Andy Coulson declarou não ter conhecimento dos grampos, mas pediu demissão, dizendo que se sentia responsável pela falha.

A investigação sobre os grampos foi reaberta em setembro do ano passado, depois que uma matéria do diário americano New York Times citou ex-funcionários do tabloide dizendo que editores teriam feito vista grossa para a prática – o que acabou sugerindo que a investigação anterior havia sido falha. Andy Coulson, que em 2010 atuava como diretor de comunicações do premiê David Cameron, acabou sofrendo mais uma vez com a história, renunciando ao cargo no governo após ser chamado a prestar depoimento. Em abril deste ano, o ex-editor Ian Edmondson e o chefe de reportagem Neville Thurlbeck foram detidos pela suspeita de escuta ilegal de personalidades como a atriz Sienna Miller e o ex-vice-primeiro-ministro John Prescott. Um juiz também determinou que o jornal entregasse aos investigadores as anotações de Mulcaire.

Falsa esperança

Os registros do detetive revelam que as mensagens no celular de Milly foram apagadas ainda nos primeiros dias de desaparecimento. De acordo com informações sobre a investigação obtidas pelo diário britânico Guardian, o tabloide teria contratado outro detetive, Steve Whittamore, para obter dados – como endereço e telefones – da família da menina. Estas informações foram repassadas para Mulcaire, que começou a interceptar ilegalmente mensagens telefônicas – assim, o News of the World tinha acesso às ligações deixadas pelos pais e amigos de Milly implorando que ela entrasse em contato. Quando a caixa postal lotou, entretanto, o jornal tinha um problema: novas mensagens não poderiam ser deixadas. A solução foi apagar recados mais antigos, deixados nos primeiros dias do desaparecimento.

Quando a família e os amigos de Milly notaram que a caixa postal havia sido esvaziada, concluíram que ela estava viva. Os pais da adolescente chegaram, na ocasião, a conceder uma entrevista exclusiva para o tabloide, onde falaram da esperança de que a filha voltasse para casa. A movimentação na caixa postal do celular também confundiu a polícia, que na ocasião tinha poucas pistas a seguir.

Curiosamente, o News of the World não fez questão de esconder que estava grampeando o telefone de Milly. O jornal interceptou uma mensagem de uma agência de emprego seis dias depois do desaparecimento da adolescente e publicou matéria afirmando que uma mulher teria tentado se passar por ela para conseguir emprego. Também entrou em contato com a polícia do condado de Surrey, que investigava o desaparecimento, para contar sobre a mensagem da agência. Os investigadores chegaram à conclusão que a mensagem havia sido deixada na caixa de Milly por engano e, mesmo desconfiando que o jornal estaria grampeando também telefones dos detetives e dos pais da garota, decidiram concentrar os esforços em encontrá-la. Além disso, na guerra dos tabloides sensacionalistas britânicos, o News of the World era apenas mais um se comportando mal. O que não se tinha ideia é que o jornal estava, além de ouvindo, apagando mensagens do telefone de Milly.

Hora de respostas

Políticos britânicos pediram que o grupo de comunicação News Corp, do magnata Rupert Murdoch, dê explicações sobre as alegações. O News of the World pertence à News International, subsidiária britânica da News Corp. O primeiro-ministro David Cameron, em viagem ao Afeganistão, afirmou que as alegações são “chocantes”; sua porta-voz declarou, na quarta-feira [6/7], que o governo apoia a abertura de um inquérito pela Câmara dos Comuns. Ed Miliband, líder do Partido Trabalhista, de oposição, defendeu que Rebekah Brooks, editora do tabloide em 2002 e hoje executiva-chefe da News International, renuncie ao cargo. No Twitter e no Facebook, internautas começaram a fazer campanha para que empresas parem de anunciar no jornal – a companhia automotiva Ford e a rede de supermercados Aldi foram as primeiras a declarar que não terão mais publicidade no News of the World, e outras grandes empresas como PC World, T-Mobile e Halifax consideram fazer o mesmo.

O detetive Glenn Mulcaire quebrou o silêncio para se desculpar, e aproveitou para criticar o jornal. “Nunca foi fácil trabalhar para o News of the World. Havia uma enorme pressão, uma demanda constante por resultados”, afirmou ao Guardian. “Eu sei que o que fiz ultrapassa os limites éticos, mas, na época, não entendia que havia violado a lei”.

Em mensagem a sua equipe, Rebekah afirmou estar “enojada” com as acusações, e negou que soubesse do grampo ao telefone de Milly Dowler. A News Corp deixou claro que a apoia. Em uma rara declaração pública, Rupert Murdoch disse que as recentes alegações são “deploráveis e inaceitáveis”.

Falta de decência

Em editorial, o Financial Times [5/7] afirmou esperar que a revolta do público diante das ações do News of the World finalmente levem a News Corp a compreender a gravidade dos escândalos envolvendo grampos telefônicos. “Por quase cinco anos, [o jornal] se arrastou vergonhosamente por intermináveis investigações sobre o acesso ilegal de seus jornalistas a mensagens de telefones celulares”, diz o texto, ressaltando que o comportamento da polícia, relutante em investigar estes casos, ainda precisa de explicação. “Mas isso não serve de desculpa a News Corp”, continua, dizendo que Murdoch deveria tomar jeito e executivos e editores deveriam ser responsabilizados pelo que acontece sob sua supervisão.

“As recentes alegações no escândalo de grampos telefônicos no tabloide britânico da News Corp o elevam a um novo nível. Não se trata mais de jornalistas infringindo a privacidade de celebridades para divulgar fofocar sobre elas. Ao interceptar as mensagens de voz de uma estudante assassinada, Milly Dowler, como o News of the World teria feito, o jornal potencialmente obstruiu uma investigação criminal. Se for verdade, não é apenas algo errado e ilegal; revela uma ausência fundamental de decência humana”, afirmou o editorial.

Com informações do Guardian, Financial Times, Telegraph e CBS News. (Edição: Leticia Nunes)

 

Leia também

Editores sabiam de grampo, acusa repórter

Tablóides de Rupert Murdoch na berlinda

Cerco político ao império de Murdoch – Walter Oppenheimer (El País, em espanhol)

Um magnata com as chaves do poder – W.O. (El País, em espanhol)

 

ATUALIZAÇÃO

A News Corp anunciou, na quinta-feira [7/7], o fim do News of the World. A última edição será publicada no próximo domingo, 10/7. Saiba mais aqui.