Monday, 06 de May de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1286

O teste da ‘memória da água’

‘Tal como tem sido até agora o esplêndido malabarismo da assim chamada homeopatia, na qual concepções a priori e sutilezas especulativas levantadas por um número de escolas arrogantes, as quais somente mostram que cada um dos seus fundadores sonhou sobre coisas que não podem ser conhecidas, e que não têm uso para a cura das doenças’. Comentário parafraseado de Hahnemann sobre a medicina de sua época e que resultou na atual. (‘Organon of medicine, preface to the second edition’, Samuel Hahnemann, Leipzig, end of the year 1818)

É difícil, senão impossível para alguém que não conhece o mínimo de um assunto avaliar a veracidade do que está ouvindo. E assim se comporta o jornalista ao pautar uma matéria científica, sem entendimento suficiente para explorar suas sutilezas. Passa a ser um repetidor do que ouviu, perdido entre dois pontos. Fica entre o fulano disse isto e o beltrano disse aquilo. Mas não consegue se situar no tema. É o que acontece com o editor da matéria do Fantástico de 9 de maio sobre homeopatia. Ainda mais quando pessoas movidas pela crença insistem em protestar para que se esqueçam as evidências científicas em nome da fé.

O que temem? Perdê-la? Por isto ciência é incompatível com religião, ao contrário do apregoado pela IstoÉ (número 1.803). Para a ciência não existem dogmas de fé! Artistas foram usados para respaldar o prestidigitador Thomas Morton anos seguidos para atestar seus poderes extraordinários. Mas jornalista não se cansa disso. Até o falecido Tom Jobim garantia que não seria tapeado pelo fenômeno da moeda torta colocada em meio a outras.

Por que a homeopatia não tem explicação?

A explicação científica só pode ocorrer em algo que acontece. Por exemplo, ninguém vê a força da gravidade ou sabe o que ela é, mas ao ocorrer o fato da atração de todos os objetos pode-se medir suas qualidades, as condições em que ela ocorre ou não, sua variação geográfica, sua diminuição de intensidade conforme a altura aumenta etc. No entanto, algo que não ocorre fora da especulação não pode ser investigado.

Achados não reproduzíveis

Um fenômeno que somente é alegado, sem se poder constatar, é impossível de ser analisado, descobertas as suas propriedades, medidas as suas indicações, confirmadas as suas virtudes, isolado o seu princípio ativo, determinadas suas condições, concentração, duração, tempo de validade, para ser usado racionalmente e responsavelmente. É impossível determinar as propriedades de um preparado homeopático. A homeopatia ortodoxa, chamada de clássica, há 200 anos baseada em princípios esotéricos, mantém-se sem a mínima comprovação, e só no Brasil é considerada ‘especialidade da moderna medicina científica’, sem, no entanto, comungar com suas bases e seus métodos.

É culpa da ciência que alguém alegue algo e não consiga comprovar?

A alegada experiência mencionada no programa por Jacques Benveniste, em 1988, na qual simulava reação alérgica em laboratório pela degranulação (expulsão dos grânulos do citoplasma da célula contendo histamina) dos basófilos (célula de defesa – leucócito) por meio da ultradiluída antiimunoglobulina E, antiig-E (anticorpo) foi festejada pelos homeopatas, carentes de provas há 200 anos, como a grande demonstração do que afirmavam. Esta experiência, já criticada várias vezes por não ter sido reproduzida, mas nunca esquecida, realmente ajudaria às alegações dos homeopatas? Uma experiência necessita poder ser reproduzida para ter validade científica, e quando isso é feito em múltiplos centros de pesquisa fica eliminada a suspeita de fraude, mostrando que o evento ocorre em outras mãos (não depende de ‘habilidade’ apenas). Fortalece assim a evidência do trabalho quando obtido de forma ampla.

A alegação histórica dos homeopatas foi o ‘crucial experimento’ de Samuel Christian Friedrich Hahnemann (1755-1843) com a ‘China’, infusão da casca da Cinchona officinalis, uma árvore do Peru, que usou em si mesmo (1790), encontrando sintomas não reproduzíveis nas pessoas sadias até hoje. Alegou, ele que apresentara os mesmos sintomas de pacientes da época que padeciam com febre recorrente, na qual se usava aquele preparado.

A explicação, na época, para contestar a discordância dos médicos destes achados não reproduzíveis foi dada pelo seu discípulo húngaro Joseph Bakody (1791-?), de que Hahnemann na sua permanência na Transilvânia em 1779, como bibliotecário, teria adquirido malária e esta estaria latente, tendo sido ativada pelo uso da infusão da casca da Cinchona officinalis. Mais tarde o farmacologista alemão Louis Lewin (1850-1929) teria defendido que Hahnemann teria tido uma idiossincrasia (sensibilidade anormal, peculiar a um indivíduo, a uma droga, proteína ou outro agente) e portanto seria possível tal descrição. Em ambos os casos não teria sido um ‘prüfung’ (pessoas testada) sadio e seriam inválidas as suas conclusões da ‘experientia in homine sano’.

Fora do organismo

Teria experimentado outros medicamentos em pessoas sadias considerando os sintomas para os diagnósticos e usos da época (1796), nunca os testando em doentes. Já na época os experimentos demonstraram que sua alegação dos sintomas que desenvolvera no uso da China eram irreproduzíveis. E, em 1820, da China foi isolado o quinino (além da quinidina), criticado por ele como um caro alcalóide, e, em 1880, foi identificado o plasmódio como um dos causadores da febre recorrente na malária. A transmissão pelo mosquito Anopheles seria demonstrada em 1898, garantindo o Prêmio Nobel de Medicina em 1902 a Ronald Ross. Mais tarde demonstrou-se que o quinino agia no plasmódio, e não no paciente, por mecanismo só descoberto no século passado. Nunca nenhum trabalho epidemiológico conseguiu demonstrar que a malária é adquirida apenas pelas pessoas com ‘distúrbios emocionais e espirituais prévios’, como alegava Hahnemann. Mesmo assim, 200 anos depois, ainda insistem em que o mecanismo de ação do medicamento seria pela ação sintomatológica semelhante. Mas, na verdade, a China oficinallis, preparada homeopaticamente, deixou de ter uso na malária até pelos homeopatas. Tipos de sintomas utilizados:

‘Na medicina convencional, o paciente está doente porque tem dor de garganta. Para a homeopatia, uma pessoa tem dor de garganta porque está doente. Sua energia em desequilíbrio se revela nos sintomas, que costumam ser identificados como as doenças tradicionais [negação da causa etiológica]. Por isso, os remédios procuram promover a harmonização energética do organismo. E sua atuação está baseada no chamado princípio da semelhança: o que pode fazer mal também pode curar, como uma vacina.’

‘O materialismo que nos foi infundido nas escolas médicas ainda nos faz pensar que como clínicos somente podemos oferecer uma terapêutica que confronte o patológico, enquanto que como homeopatas podemos balizar nossa conduta pela ‘excentricidade’ do enfermo.’

‘No caso de uma amidalite, por exemplo, os sintomas de dor, mau-hálito, febre são comuns neste quadro infeccioso. Só com estes sintomas o homeopata não poderá tratá-la. Mas quando um paciente começa a referir que a dor de garganta piora quando engole líquidos, mais do que com sólidos, e também com alimentos quentes, esta amidalite começa a ser diferente da de outro que relata doer mais quando engole sólidos e alimentos frios.’

‘Ela procura deitar só numa posição? Apresenta alguma intolerância às roupas ou cobertas? Tem sede? Esta sede é de golinhos, ou é de goles grandes?’

Não haveria ação diferente do que a esperada.

Quanto à experiência do Dr. Benveniste, nada tem a ver com o semelhante de Hahnemann. A alergia não acontece na pessoa sadia. A ação da substância alérgica só acontece no doente. Não é pelo sintoma similar, a ‘lei universal da cura’, que o basófilo degranularia, mas pela mesma ação, igual reação, que aconteceria com a solução molecular não diluída ao ativar os basófilos e que ultradiluída teria guardado a alegada ‘memória da água’. Seria a mesma ação primária da antiIg E. Não tem nada a ver com a ‘energia de ordem vibracional’, ‘dinâmica’, agindo na ‘força vital’. As células basófilas do experimento estavam fora do organismo, e não integradas ao ‘holismo’ do paciente.

Sem conhecimento

O que alegam ser a ‘memória da água’ na verdade é a prova do incrível esquecimento, pois ela não lembra que a tintura-mãe era veneno, pus, aranhas esmigalhadas etc., para só ter uma alegada ação ‘benéfica’! Nenhum método analítico consegue identificar a sua história (tintura-mãe e o grau de dinamização) sem o rótulo! O que é lógico, pois sua ação está baseada só nas ‘hipótesis final sobre el origen metafísico de la psora en el medicamento estudiado’. (‘El estudio de la patogenesias y su aplicación en medicina veterinária, Dr. Juan Agustín Gómez: http://www.weim.net/homeovet/Docs/PATOGENESIAS.doc)

Isso não transforma substâncias escatológicas, como fezes de pássaros Guano Australis, esmegma de castor Castoreum, pus de lesões de escabiose Psorinum, catarro verde Tuberculinum Viridis, secreção de gonorréia Medorrhinum, baba de cachorro louco Lyssinum ou Hidrofobium, metais em dose tóxica Aluminium, Stannum, Ferrum Metallicum, venenos como Belladona, Cicuta virosa, Arsenicum Álbum em substâncias curativas, ainda mais para diagnósticos místicos inacreditáveis.

Mas, para que uma busca tão desesperada no escuro? Não seria simples demonstrar que os pacientes com malária, portadores do plasmódio, independentemente de sua singularidade e de serem ‘irreproduzíveis sintomaticamente’ teriam removido do organismo o plasmódio pela ação curativa alegada? Está é a finalidade de qualquer terapia, não a elucubração, o esgravatar no pernicioso tecido das conjecturas, mas a cura daquilo que incomoda e afeta o paciente. Esta desculpa de que não existem dois pacientes iguais esconde apenas o fracasso terapêutico da homeopatia, pois podem ser conseguidos 10, 20 ou 50 pacientes com malária, doença que alegam que Hahnemann curou, que independentemente de seus sintomas ‘espirituais’ e peculiaridades individuais devem ser livrados do plasmodium, causa material da malária. Como podem garantir curar o paciente se nem uma simples malária, há 200 anos, conseguem comprovar que curam? Isto não requer nenhum laboratório sofisticado. O experimento do Dr. Benveniste não seria suficiente para provar aquilo que os médicos homeopatas não conseguem!

Mas os editores do Fantástico não têm este mínimo conhecimento para passar aos trelespectadores.

******

Médico, Porto Alegre