Friday, 19 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

O delicioso código do jurista

O livro de Saulo Ramos, Código da Vida: fantástico litígio judicial de uma família: drama, suspense, surpresas e mistério, está há um ano na lista dos mais vendidos da revista Veja. Logo na ‘Explicação necessária’, que antecede o primeiro dos 218 capítulos, o autor admite que ‘o sigilo profissional impõe aos advogados o dever do silêncio eterno’. Por isso, ‘o público jamais conhecerá essas histórias fascinantes dos dramas humanos vividos nos processos que correram em segredo de justiça’. E, em conversa clara, diz: ‘Resolvi contornar essa regra ética, sem quebrá-la. Neste livro, narro um desses casos, trocando os nomes das pessoas. É impactante’.


Não se sabe se é do autor a nota de número 1, ao pé da página:




‘A palavra `impactante´ não existe nos dicionários. Com perdão dos ilustres cultores da nossa querida língua, inculta e bela, os dicionários estão atrasados’.


Estão, sim, atrasados, em mais de trinta anos, os nossos lexicógrafos, mas não neste caso. Estranhando a afirmação, fui a alguns dicionários, começando pelo Aulete Digital. Por ser atualizado na internet, não precisamos aguardar a edição impressa. E lá estava:




‘Impactante: Que causa impacto, impressiona; chocante; impressionante’.


Palavra nova


Talvez não estivesse nos outros dicionários. Fui ao Houaiss. E lá encontrei: ‘Impactante: que causa impacto; chocante’. Quem sabe, quem preparou a edição do livro, encontrando a palavra `impactante´ no original do autor, resolveu ir ao Aurélio, o mais consultado do país, e não encontrou o adjetivo de dois gêneros.


Fui ao Aurélio. E lá encontrei:




‘Impactante: [De impactar + -nte.]Adj. 2 g. 1. Que causa impacto2; impressionante, chocante’.


Outros três não têm ‘impactante’: o Nascentes, o Larousse e o Michaelis.


Bem, chega de procurar. Quod erat demonstrandum, a palavra `impactante´ existe, sim, nos dicionários, embora não em todos.


Pode parecer capricho ou obsessão demorar-se desse modo numa palavrinha. Mas a Bíblia adverte que nem um único til pode ser mudado (a letra não é esta no original hebraico, que não tem til…). E colocação de vírgula já levou a execução de condenados, em crime de Estado sem reparação possível, daí o sadio cuidado prévio de cidadãos esclarecidos nem quererem saber de discutir pena de morte no Brasil. Menos para os revisores, como brincou certa vez Otto Lara Resende.


Haveria outros casos para ilustrar a luta diária que um escritor trava com as palavras – segundo Carlos Drummond de Andrade, ‘lutar com palavras./ é a luta mais vã,/ entanto lutamos,/ mal rompe a manhã’. Mas completo a digressão com o ex-ministro do Trabalho de Fernando Collor de Mello, o sindicalista Rogério Magri. Quando foi lançado o Plano Collor, ele lembrou, ‘o direito de greve é imexível’.


Os jornalistas cobriram o rapaz com uma saraivada de xingamentos, condenando a palavra que não estava nos dicionários. Não estava, mas agora está. No Houaiss e no Aulete Digital, que inclusive dão o ano de entrada em cena (1990): ‘Imexível’, diz o primeiro ‘adjetivo de dois gêneros, em que não se pode mexer; inalterável. Ex.: um plano de governo i.’. E o Aulete Digital explica melhor:




‘Imexível, a2g. 1 Em que não se pode mexer; inalterável; inatacável; intocável.: ‘Magri diz que direito de greve é `imexível´.’ (Diário do Passado, 04.03.1991) [ Antôn.: alterável, mexível.]’


Estilo próprio


Saulo Ramos diz na página 460, a última do último capítulo:




‘Sou bananeira velha. Já planejei tudo.Volto para o interior. (…)Vou conhecer afinal a liberdade’.


Refere-se ao tormento dos prazos e do relógio. E cita Sofocleto,…




‘…um escritor espanhol, que, entre outras coisas, deixou esta frase curiosa: `A liberdade consiste em não usar relógio´. Para advogado, que passa todos os dias submetido a prazos, é a meta mais perseguida no fim da vida’.


Gostei tanto do livro que comprei vários exemplares para presentear amigos. E fui recompensado. Recebi um do autor, autografado. Mas, espero não aborrecer o amigo com impertinências, Sofocleto não é espanhol. É peruano. É o pseudônimo de Luis Felipe Angell, que foi alfabetizado aos quatro anos e foi um dos homens que mais leu nesta vida. Digo ‘nesta vida’ porque para mim, se merecer o Céu, perguntarei à entrada para São Pedro, como fiz quando fui matricular minha filha no Colégio São Carlos: ‘Este colégio tem biblioteca?’.


Irmã Jeanne D’Arc, a diretora, pareceu surpreender-se, mas me levou à biblioteca, respondendo com palavras, estantes e livros. Foi quando soube que eu tinha me tornado o primeiro pai de aluna daquele colégio a fazer tal pergunta.


Sofocleto nasceu em 1926 e morreu em 2004. Recebeu de seus tios-avós uma herança singular: duas bibliotecas que, no conjunto, tinham 25.000 volumes, ‘una cantidad que en aquel entonces no la tenía ni la Biblioteca Nacional do Peru’, ele escreveu jocosamente, como era de seu estilo.


E é do estilo de Saulo Ramos, escritor delicioso, em artigos como neste livro, cuja leitura recomendo vivamente, pois esses errrinhos são percebidos apenas por poucos leitores e de modo nenhum prejudicam a leitura. O livro já teve diversas reimpressões. A próxima poderia acolher estas e outras correções.

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Escritor, doutor em Letras pela USP, professor e vice-reitor de Pesquisa e Pós-graduação da Universidade Estácio de Sá (Rio de Janeiro) e autor, entre outros, dos romances Avante, Soldados: Para Trás (1992), Os Guerreiros do Campo (2000) e Goethe e Barrabás (2008)