As ruidosas e majoritariamente eufóricas manifestações em torno da venda do Washington Post ao bilionário digital Jeff Bezos, dono do maior entreposto de livros de todos os tempos, poderiam ser enfeixadas num dossiê intitulado “Muito barulho por nada” (Much Ado About Nothing, com os agradecimentos póstumos a William Shakespeare).
Afirmar que o 5 de agosto foi um grande dia na história da imprensa é praticar um gênero de jornalismo prospectivo, tipo abracadabra, bola de cristal, que pega muito bem num blog e logo é esquecido.
Ninguém sabe o que Bezos fará com o brinquedo que acaba de comprar por uma pechincha – talvez ele mesmo não saiba ao certo, por mais esperto, racional, inventivo e genial que seja.
Foi certamente um grande dia na história dos negócios da mídia. Tal como aquele, na aurora do século 21 (janeiro de 2000), quando o venerando e gigantesco conglomerado de mídia & entretenimento Time-Warner-CNN foi comprado pelo adolescente (então com 15 anos) provedor de internet America On-Line (AOL), por 118 bilhões de dólares, a maior transação da história do capitalismo. Alguém lembra? Qual a posição hoje deste gigante no mercado da comunicação, treze anos depois?
É até possível que o fatídico dia em que a família Meyer-Graham entregou o WP à família Bezos (a compra não foi efetuada pela Amazon, mas com os recursos pessoais do bilionário) venha a entrar para a história como “O dia em que a Imprensa virou Mídia”. Faz sentido, considerando os atributos e façanhas de Jeff Bezos. De qualquer forma, o coro de regozijos dos últimos dias tem a mesma sonoridade das comemorações sadomasoquistas que nos últimos vinte anos acompanham os anúncios do fim dos impressos.
Títulos indispensáveis
A decadência do WP não se deve apenas à sua inapetência frente à concorrência digital, o jornal enquanto jornal batia pino. Perdeu a garra. Há poucas semanas, quando Edward Snowden, ex-consultor da NSA, lhe ofereceu em primeira mão o furo sobre a “espionagem” americana, o jornal que derrubou Richard Nixon não conseguiu atender a todas as suas exigências. Quem abocanhou o material foi o britânico The Guardian, que também enfrenta dificuldades, mas não entrega os pontos. O novo patrão do Washington Post saberia tomar um atitude jornalisticamente mais ousada do que o antecessor?
Este observador é extremamente grato a Jeff Bezos por tornar possível a compra de livros no exterior por intermédio da Amazon. Agora, com apenas alguns toques e muitos reais, compra-se aqui um livro americano publicado em 1976 ou alemão recém saído que em poucos dias será entregue pelo correio na sua porta. É um milagre.
Em compensação, o mesmo Bezos acabou com as livrarias nos EUA. E livrarias não são pontos de venda, são monumentos culturais, espaços de fruição e deleite, vitrines de uma civilização que está se esvaindo e já deixa saudades.
O leitor do Kindle – a maquineta que permite a leitura dos livros eletrônicos comercializada pela Amazon – não aparenta prazer, parece angustiado, precisa “traçar” o conteúdo do e-book recém baixado da rede da forma mais rápida possível. O Kindle não é kind – gentil – ao contrário: sugere afobação, monetização, descartabilidade.
Devemos esta revolução a um empreendedor de 49 anos, o 26º mais rico do mundo que usou apenas 250 milhões do total de 18 bilhões de dólares que acumulou para adquirir uma das marcas mais prestigiosas do universo jornalístico.
Ninguém lembrou que Warren Buffet, de 82 anos, o maior acionista do Washington Post depois da família Meyer-Graham, terceiro homem mais rico, foi convidado a comprar o jornal e desistiu. Prefere ficar com a sua crescente coleção de jornais comunitários que breve chegará a 100 títulos.
“Jornal só sobrevive quando se torna indispensável; numa grande metrópole difusa, descentrada, a escala torna impossível esta indispensabilidade”, repetiu Buffett a este observador quando foi entrevistado para o programa Observatório da Imprensa no início de maio (ver aqui).
Na história da imprensa, por enquanto, um Buffett vale algumas dúzias de Bezos.
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