Na segunda metade dos anos 1930, quando Eric Hobsbawm era bolsista em Cambridge, uma pergunta circulava entre seus amigos comunistas da universidade britânica: “Existe algo que Hobsbawm não saiba?” Havia algumas coisas. Talvez a principal delas era que a crise da década de 1930 não seria a crise final do capitalismo. “Achávamos que seria, mas não foi”, escreveu o historiador marxista 40 anos depois, ainda filiado ao Partido Comunista, ao qual foi vinculado até sua extinção, em 1989. Ironicamente, foi após o fim do comunismo que Hobsbawm – que nunca se fechara entre seus pares na academia – ganhou ainda mais relevância como intelectual público na Inglaterra. E nas últimas duas décadas, o britânico, que certa vez se definira como um historiador do século XIX, reforçou publicamente a relação entre sua vida e seus escritos, em grande parte dedicados aos acontecimentos do século XX – muitos dos quais ele, nascido em Alexandria, no Egito, em 1917, ano da Revolução Russa, acompanhou de perto.
“Cada historiador tem sua posição, a partir da qual observa o mundo. A minha está construída, entre outros materiais, por uma infância na Viena dos anos 1920, pelos anos da ascensão de Hitler em Berlim, que definiram minhas ideias políticas e meu interesse pela História, e pela Inglaterra, especialmente a Cambridge dos anos 1930”, disse ele em Creighton, em 1993.
Se foi nos anos em Berlim que o adolescente Hobsbawm leu Marx pela primeira vez, foi a Grã-Bretanha que lhe deu o material inicial para sua pesquisa acadêmica, a partir da Revolução Industrial e de movimentos sociais do século XIX, e sua vida política, com o apoio ao Partido Trabalhista – do qual se tornou uma espécie de guru nos anos 1980, e que seria objeto de suas críticas.
Mais do que a Inglaterra, a história da Europa foi objeto da grande pesquisa de Hobsbawm, como atestam seus quatro volumes sobre os séculos XIX e XX: “A era das revoluções”, “A era do capital”, “A era dos Impérios” – os três publicados no Brasil pela Paz e Terra – e “A era dos extremos”, um dos livros mais pessoais de Hobsbawm, que viveu a maior parte do “breve século XX”. Editado pela Companhia das Letras, este livro teve 227 mil exemplares vendidos no país – onde Hobsbawm participou, em 2003, da primeira Festa Literária Internacional de Paraty.
Vínculo com a classe operária britânica
Filho de pai britânico e mãe austríaca, Hobsbawm cresceu em Viena e, após a morte dos pais, judeus, mudou-se para Berlim com a irmã, Nancy, indo viver com um tio. Em 1933, depois que Hitler assumiu o poder na Alemanha, o tio levou os dois sobrinhos para Londres. Durante a Segunda Guerra Mundial, o historiador se ofereceu para colaborar com a inteligência britânica, mas foi recusado por sua filiação ao Partido Comunista, e por fim ajudou na construção de defesas da Costa Leste: “A experiência em tempos de guerra me ligou para sempre à classe operária britânica.”
A fidelidade de Hobsbawm ao Partido Comunista, que permaneceu mesmo durante a invasão da União Soviética à Hungria, em 1956, foi alvo de críticas de intelectuais. Apesar de manter a convicção comunista, Hobsbawm não poupou críticas ao regime soviético. E conquistou leitores de esquerda e de direita pela rara união de pesquisa profunda e linguagem fluente, de poder de síntese e atenção aos detalhes.
Em junho, Hobsbawm comemorou seu 95º aniversário em um jantar com historiadores como Peter Hennessy, e recebeu cumprimentos de Giorgio Napolitano e Luiz Inácio Lula da Silva – ex-presidentes de Itália e Brasil, dois dos países onde tem mais leitores.
– Ele foi um ídolo dessa geração que chegou ao poder – diz Luiz Schwarcz, editor da Companhia das Letras, lembrando a admiração de outro ex-presidente, Fernando Henrique Cardoso, pela obra do historiador. – Com a morte dele, perdemos essa visão marxista mais aberta, esse olhar arguto que formou tantas pessoas.
O Instituto Lula divulgou em seu site uma mensagem do ex-presidente para a viúva de Hobsbawm, na qual ele lamenta a morte do “querido amigo, um dos mais lúcidos, brilhantes e corajosos intelectuais do século XX”.
Marcus Gasparian, editor da Paz e Terra, casa que começou a publicar a obra de Hobsbawm no Brasil em 1975, conta que, mesmo com o ritmo menor dos compromissos públicos, Hobsbawm não recusava convites de sindicatos:
– Em 1990, acho, ele recebeu convite para falar em uma universidade de São Paulo e avisei que ele não iria. No mesmo dia, um sindicato de São Bernardo ligou convidando-o para falar no dia seguinte. E ele aceitou!
O historiador morreu na madrugada de ontem no Royal Free Hospital de Hampstead, na Inglaterra, de pneumonia. Ele deixa a mulher, Marlene, os filhos Julia, Andrew e Joss, além de sete netos e um bisneto.