Em apenas 29 dias – do Carnaval à metade da Quaresma – a igreja católica deu uma das mais surpreendentes guinadas nos seus 20 séculos de história. Com uma abdicação – e não com um golpe de poder – desatou-se o nó que enredava enorme teia de escândalos, malfeitorias, desvios morais e espirituais. Um formidável conjunto de transformações foi magicamente acionado e a mídia, ainda ofegante e embasbacada, não consegue avaliar o que está efetivamente acontecendo.
A perturbação dos mediadores patenteou-se simbolicamente no próprio ato da renúncia de Bento XVI, que poderia ter passado despercebido não fosse uma jornalista italiana, proficiente em latim, ter entendido que aquele comunicado aparentemente burocrático continha uma inédita e retumbante proclamação.
Sem questionar as manhosas explicações da Cúria, a mídia aceitou ingenuamente a tese da enfermidade e fragilidade do pontífice, não notou o extraordinário vigor de suas palavras nos dias seguintes, sobretudo as acusações contra a hipocrisia e o carreirismo religiosos.
Ninguém se deu ao trabalho de acessar o Google para descobrir qual foi o teólogo alemão que em passado distante também deblaterou contra a hipocrisia da Santa Sé. Se o fizessem teriam percebido que o adversário da Santa Madre Igreja não é o luteranismo, mas os seus quase espúrios descendentes – os evangélicos neopentecostais – que estão arrebanhando grandes contingentes de crentes em territórios e segmentos que deveriam estar no rebanho católico.
Com a preparação do conclave que escolheria o sucessor de Bento XVI, a mídia entrou no clima de torcida organizada. Uma vasta legião de vaticanistas começou a palpitar sobre os papáveis, os papabili, logo transformados em cassandras profissionais: trabalham de graça e são incapazes de dizer heresias.
Nenhum repórter foi gastar sola de sapato nas vielas da Cidade Eterna para saber qual foi o segundo colocado no último escrutínio que elegeu o cardeal Joseph Ratzinger, em 2005. Se o fizessem, saberiam que o argentino Jorge Mario Bergoglio tinha mais chance de ser eleito do que todos os candidatos americanos ou italianos que apareciam nas bolsas de apostas.
Acostumada a reproduzir as frases peremptórias de políticos e empresários, a mídia não percebeu que a retórica eclesiástica é diferenciada. Sermões, homilias e encíclicas são expressos em linguagem não cotidiana, servidas por eufemismos e sutilezas. O mais importante estudioso contemporâneo da inquisição portuguesa, Elias Lipiner, produziu um clássico filológico – Terror e Linguagem, um dicionário da Santa Inquisição (Ed. Contexto, Lisboa, 1998). A igreja paira na esfera sagrada, não pode ser óbvia, razão pela qual o genial sermonista padre Antonio Vieira só conseguiu destacar-se utilizando altas doses de drama e poesia.
A igreja cansou de caçar e fabricar hereges, a Inquisição foi desativada, mas para acompanhar os próximos lances da Virada Vaticana os jornalistas especializados necessitarão passar por um intenso treinamento para entender a cifrada linguagem e as nuances semânticas empregadas.
Milagre na mídia brasileira
Imediatamente a partir da escolha do papa Francisco, grande parte da nossa mídia rompeu os votos de obediência e reproduziu as acusações originárias da Argentina sobre uma suposta colaboração do então arcebispo de Buenos Aires com os órgãos de segurança durante a sangrenta “guerra suja”.
O jornalista portenho Horácio Verbistky, um dos criadores do engenhoso tabloide Página/12, e nos últimos anos um dos mais conhecidos denunciadores do conluio igreja-repressão na Argentina, foi fartamente mencionado. Embora o seu livro El Silêncio tivesse sido recusado nos últimos anos por diversas editoras brasileiras, de repente saiu da clandestinidade (ver, neste Observatório, “Um ersatz”).
Na competição entre os semanários, Época ganhou de goleada de Veja com uma matéria onde nada faltou. O texto “Os padres e os generais”, de autoria de Alberto Bombig e Angela Pinho, é simplesmente aterrador não apenas pelo flagrante do ditador Jorge Rafael Videla (condenado à prisão perpétua) comungando inocentemente, mas pela revelação de que apesar dos arrufos dos Kirchner com setores eclesiásticos, o casal sempre conviveu pacificamente com uma aberração política – o Artigo 2º da Constituição argentina, onde está garantida a sujeição do Estado à Igreja. Razão pela qual o muçulmano sunita Carlos Menem precisou converter-se ao catolicismo para formar-se em Direito e seguir a carreira política.
Veja tentou esmerar-se numa história da Companhia de Jesus, mas quebrou a cara. Menciona en passant o padre Antonio Vieira, mas esquece que o jesuíta foi preso pela Inquisição portuguesa e para escapar da pena de “relaxamento” (execução) foi convocado para viver no Vaticano.
Nenhum dos veículos nacionais teve a coragem de aventurar-se pelo futuro do Opus Dei no pontificado de Francisco. A prelazia foi fundada em 1928 pelo sacerdote espanhol Josemaría Escrivá de Balaguer (canonizado por Karol Woitila, em 2002), e depois da sua intensa colaboração com a ditadura franquista pretendeu converter-se em sucessora da ordem fundada por Ignácio de Loyola acercando-se dos grandes grupos empresariais espanhóis. Os jesuítas celebrizaram-se pelo empenho evangelizador e educacional, já os seguidores do Opus Dei usam o marketing, a publicidade e a mídia. Jesuítas como o papa Francisco fizeram a opção pelos pobres, o Opus Dei prefere a alta burguesia. Por enquanto detém grande poder em diferentes escalões da nossa mídia. Resta saber até quando.
O tripé franciscano do bom jornalismo
O encontro do novo pontífice com a imprensa reunida em Roma foi solene, aconteceu no sábado (16/3), presentes quatro mil profissionais. Não foi uma entrevista coletiva, foi um pronunciamento destinado a reforçar a natureza da igreja, suas motivações espirituais e não políticas ou terrenas, e oferecer uma plataforma comum baseada numa tríade constituída de verdade, bondade e beleza.
Da santíssima trindade de jornalões nacionais de domingo (17), apenas um, O Globo, reproduziu o modelo integralmente. Folha de S.Paulo e Estadão contentaram-se apenas com a verdade. O que não é pouco. Esqueceram bondade (ou generosidade) e beleza (ou inteligência).
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