Friday, 15 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1314

O Santo Ofício volta ao Recife

 

Como qualquer capitão da indústria, o dono de um jornal – ou seus prepostos – tem o direito de interromper a compra de artigos de um colunista. Afinal, os jornalistas são no Brasil majoritariamente PJ (pessoas jurídicas), meros vendedores de produtos e serviços. Portanto, sujeitos às leis do mercado e, sobretudo, aos humores, idiossincrasias e preconceitos daqueles que os adquirem.

Enquanto fornecedor de um “produto”, este observador não teria o direito de espernear se um eventual comprador de seus artigos interrompesse o fornecimento. Mas a anulação do contrato que mantinha com o Jornal do Commercio do Recife para o fornecimento de um texto semanal, aos fins de semana, adquiriu tamanha semelhança com um ato censório que omiti-la seria um desserviço aos leitores crentes no compromisso democrático dos jornais brasileiros.

Em 13 de março, este observador recebeu uma lacônica comunicação da administração do Sistema Jornal do Commercio informando que dentro de 30 dias se procederia ao “distrato”. Curiosamente, no início do ano o jornal havia determinado o reajuste anual dos vencimentos segundo os índices de inflação. O afastamento não tinha motivação econômica, as contas da empresa não poderiam ter-se deteriorado com tamanha velocidade.

Impressões digitais

Indagado, em e-mail posterior o diretor de Redação Ivanildo Sampaio informou que o último texto seria publicado no domingo, 15/4. Expert no assunto, o ex-colunista foi verificar o teor dos artigos publicados no primeiro trimestre: em janeiro-fevereiro gozara as costumeiras férias e, antes de ser “distratado”, só havia escrito dois textos. Em 25/2 tratara do pitoresco réveillon brasileiro sempre sincronizado ao tríduo momesco, texto absolutamente inofensivo. Mas em 3/3 o articulista cometera o desatino de comentar a indicação do devoto senador Marcelo Crivella para ocupar o Ministério da Pesca, relacionando-a com a declaração do secretário geral da Presidência da República de que o novo ministro ajudaria o governo no relacionamento com as igrejas. Impossível evitar as reflexões sobre o enganoso laicismo do Estado brasileiro. O “distrato” foi comunicado dois dias depois da publicação deste texto (ver “Moqueca à Crivella”, também publicado no Diário de S.Paulo).

Embora as evidências apontassem claramente para uma punição do tipo mordaça, não havia provas. Estas, porém, foram fornecidas pelo próprio Jornal do Commercio, desta vez contra aquele que seria o último artigo: um comentário sobre a histórica decisão do STF autorizando gestantes abortar no caso de fetos anencéfalos.

Todos os jornais da sexta-feira (13/4) comentaram “a histórica decisão” da suprema corte, a heresia do ex-colunista do JC/Recife foi explicar por que era histórica (ver abaixo).

Ivanildo Sampaio – ou quem determinou a truculência contra o seu colunista – prestou um enorme serviço à transparência do processo jornalístico brasileiro: tornou inconfundíveis as impressões digitais do retorno da Inquisição, 419 anos depois da chegada do Visitador do Santo Ofício ao Recife.

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O nome da façanha é laicismo

A.D.

Impossível minimizar ou disfarçar a importância da decisão do Supremo Tribunal desta quinta-feira [12/4] dando à gestante o direito de solicitar a interrupção da gravidez quando o feto é anencéfalo. A corte admitiu mais uma circunstância em que o aborto é permitido. Movimento histórico, insofismável.

As alegações dos oito ministros que votaram a favor deste direito concedido à mulher desenvolveram-se em diferentes esferas – jurídica, médica, moral, espiritual e inclusive retórica. Ficou visível o empenho em evitar especulações sobre as implicações ideológicas, teológicas e institucionais da decisão. Mesmo os dois magistrados que votaram contra o direito esquivaram-se da questão fulcral: pela primeira vez na história do Brasil foram contestadas em tribunal as imposições da Igreja Católica (agora associada às outras confissões cristãs).

As exceções ficaram por conta do debochador-mor, o ministro Gilmar Mendes, referindo-se aos “faniquitos dos anticlericais” quando protestou contra a proibição imposta aos advogados da CNBB de se manifestar na tribuna. Secundado pelo conservador Celso de Melo, que advertiu ingenuamente para não se converter aquela controvérsia jurídica numa disputa Igreja-Estado.

A CNBB tirou da clandestinidade a questão chave, a “ingerência da religião no Estado laico” justamente ao tentar desmenti-la. O laicismo da República Federativa do Brasil é fingido, cosmético. A concordata entre o Estado brasileiro e o Vaticano orquestrada pelo presidente Lula à revelia do conhecimento público é prova disso. A concessão de dezenas de emissoras de rádio e TV a entidades assumidamente religiosas é outra demonstração do nosso secularismo enganoso.

O laicismo francês é orgânico, inseparável da fé republicana. Na simbologia institucional americana abundam referências religiosas: o papel moeda ostenta o moto “In God We Trust”, Confiamos em Deus, na solenidade de posse os presidentes fazem o juramento com a mão na Bíblia e, no entanto, anexado à Constituição dos EUA está um conjunto de dez emendas pétreas, simples e contundentes, nas quais se garantem os direitos fundamentais do cidadão. A primeira e mais famosa proíbe taxativamente o Congresso de criar uma religião oficial, impedir a liberdade de culto, ameaçar a liberdade de expressão, da imprensa e de reunião.

São laicismos diferenciados, mas efetivos, inquestionáveis. O nosso começou a ser implementado agora, 512 anos depois do Descobrimento, e mesmo assim precisará da máxima discrição para não gerar retaliações ou compensações deformadoras. A histórica decisão desta semana precisará ser camuflada ainda que o laicismo seja símbolo da tolerância, do humanismo, da modernidade. E da paz.

As principais zonas de guerra e conflito hoje se situam precisamente em regiões onde não existe a noção de secularismo e Estado de direito, a primavera árabe está resultando em novo surto de fundamentalismo político-religioso. Israel, criado a despeito do messianismo dos ortodoxos, caminha rapidamente para tornar-se um Estado teocrático.

O Brasil avançou e não deve envergonhar-se do avanço. O laicismo não é antirreligioso, ao contrário, devolve a religião ao plano espiritual. De onde jamais deveria ter saído.