No nascente mercado de streaming de audiovisual na internet, é especialmente útil observar com atenção negócios como a Apple TV e o YouTube. As atuações de empresas extremamente diferentes, mas que, ainda assim, atuam de forma complementar num mercado de comunicação em permanente reformulação, surgem como um tema de intensa relevância. Some-se a isso a forma pela qual mecanismos tradicionais de negociação, como os direitos de propriedade intelectual e sua contraditória contribuição para renovar o poder de players tradicionais no mercado audiovisual, e tem-se um cenário instigante.
De fato, o YouTube possui extrema importância na história da convergência entre internet e televisão. Afinal, ao demonstrar de que modo é possível aproveitar os benefícios de assistir audiovisual através da rede, esse serviço foi principal fator de aprendizado do público nesta tarefa. O curioso é que o YouTube pode ser tudo, menos um sucesso comercial. Apesar de seus mais de um bilhão de acessos diários e da participação notável no cenário do audiovisual em rede, o YouTube não é uma empresa lucrativa, demonstrando que êxitos de faturamento e público podem não caminhar juntos.
Menos conhecida e mais segmentada, a Apple TV surgiu em 2007, com a intenção não de competir diretamente com o YouTube, mas de ser uma fonte própria de rendimentos a partir de serviços de outras firmas, gerando lucro para a Apple. A histórica corporação de hardware apostava num set-top box que permitisse acesso privilegiado ao iTunes Store, formando uma espécie de rede entre ambos os serviços. Na realidade, o serviço opera como uma locadora online, que aluga instantaneamente, via download, seriados e filmes por preços bastante convidativos (cerca de US$ 0,99 cada). Assim, embora não seja encarada como um produto de propriedades revolucionárias no cenário da convergência da internet com a televisão, a Apple TV é um sucesso financeiro.
Apple TV vs. TV paga
O YouTube hospeda e veicula qualquer tipo de vídeo, enquanto a Apple TV distribui apenas audiovisuais que já possuem um público definido (filmes lançados no cinema e seriados transmitidos em grandes canais televisivos). Suas diferenças são o ponto principal. Os novos negócios de streaming amador têm a obrigação de afirmar a relevância de seu conteúdo. De outro lado, os negócios de streaming de audiovisual premium possuem conteúdo relevante por si só. O principal problema do segundo grupo é recorrer a acordos que permitam utilizar material já conhecido pelo público, na verdade mais simples e convencional.
Aqui, uma contradição: se um empreendimento de internet não agrega conteúdos televisuais próximos do imaginário do público, terá dificuldade de obter sucesso financeiro no curto prazo. Se, ao contrário, a iniciativa aposta no previamente experimentado, deixa de participar de um processo de inovação que, em algum momento, deverá trazer resultados positivos econômicos, não obstante no plano do fazer comunicação desde o início traga bons dividendos. Velhos padrões ainda possuem uma intensa capacidade de sobrevivência, mas a lógica da PluriTV – esta televisão que está em todos os lugares, com maior ou menor protagonismo – prevê que, a seu modo, cada modalidade televisiva acabe construindo seu próprio modelo de financiamento, podendo haver mais de um até em uma mesma plataforma.
Tal constatação afirma-se através da – outra – velha estratégia de distribuição de conteúdo. A distribuição de um audiovisual possui etapas, formando as janelas de exibição. Um filme é lançado no cinema e posteriormente distribuem-no em DVD; depois, licenciam-no para canais de TV por assinatura e, finalmente, ele é liberado para a televisão aberta. Para o streaming, a questão tem sido delimitar o lugar de tal projeto neste antigo circuito. Serviços como a Apple TV surgem como uma alternativa, comprometendo possivelmente as próximas etapas. Existe um risco de ele canibalizar o negócio de TV paga, roubando espectadores e tornando-se uma espécie de rival.
Estratégias de controle de conteúdo
A interação eficiente entre diversos elementos é extremamente proveitosa para negócios de comunicação concentrados. Num processo de sinergia bem articulada, a transição de uma etapa de veiculação para outra dá-se sem problemas. Pode-se poupar esforços de marketing, uma vez que o grande público já conheça o produto. A digitalização – palavra-chave na convergência entre televisão e internet – permite uma reapropriação mais rápida e barata, tornando um programa mais relevante por mais tempo. Em todo este ciclo, a negociação de direitos autorais torna-se paradoxalmente importante para estes benefícios serem obtidos. Sem ela, não é possível o processo de sinergia.
A partir deste debate, é possível inferir que existe a possibilidade de visualizar os negócios de streaming como um experimento a ser internalizado por grandes corporações. Considerando a extensa consolidação das últimas décadas, vê-se que isso é extremamente viável já que, a partir daí, os negócios de streaming deixam de ser um rival dos serviços de televisão por assinatura, passando a ser um aliado. Isto conferiria ainda mais poder às grandes corporações, obtido através exatamente de velhas estratégias de controle de conteúdo.
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[Valério Cruz Brittos e Bruno Bottega são, respectivamente, professor titular no Programa de Pós-Graduação em Ciências da Comunicação da Unisinos e graduando em Comunicação Digital na mesma instituição]