O tema dos direitos humanos está contemplado em diversas formas nas edições desta quinta-feira, dia 2/2, dos jornais de circulação nacional. Na mais explícita delas, as reportagens tentam dissecar as declarações da presidente Dilma Rousseff durante sua visita a Cuba – mal dissimulando o tom de crítica ao fato de não ter havido uma condenação direta da dirigente brasileira aos seus anfitriões.
A ênfase do noticiário pesa na suposta “frustração” de ativistas com a falta de assertividade nas declarações oficiais, como se fosse praxe chefes de estado questionarem as políticas de quem os recepciona.
Nas referências indiretas ao assunto direitos humanos, a imprensa dá curso a discussões entre autoridades federais e representantes da oposição em torno da operação policial que retirou os moradores de uma ocupação no bairro Pinheirinho, em São José dos Campos.
Também se refere à questão dos direitos básicos da cidadania o debate em torno das prerrogativas do Conselho Nacional de Justiça.
O direito essencial à distribuição equânime da Justiça está implícito nas disputas sobre a necessidade de controle externo do Judiciário, embora os jornais tenham destacado afirmações que encaminham o debate exatamente na direção contrária.
Não é preciso grande esforço intelectual para se concluir que o corporativismo nos órgãos internos da Justiça compromete a capacidade da instituição de atender a esse pressuposto básico do regime republicano.
Da mesma forma, ao abordar a política brasileira para imigrantes haitianos, a imprensa está tratando de direitos humanos, embora isso não esteja dito claramente nas reportagens.
No entanto, percebe-se que os jornais não vinculam necessariamente todos esses assuntos ao seu eixo principal – o direito amplo e equânime entre os cidadãos. Direitos humanos, na imprensa brasileira destes dias, são apenas os dos cubanos privados da liberdade de expressão e das facilidades de ir e vir.
Essa é uma questão relevante, mas não é a única nem a mais importante. Paralelamente, os direitos dos moradores expulsos do Pinheirinho se enquadram em outro artigo qualquer no manual das redações.
Qual seria a causa dessa distorção?
Ironia e cinismo
As redes sociais da internet estão cheias de fotografias e vídeos feitos por jornalistas independentes e militantes de organizações sociais que se dispuseram a tentar entender o que aconteceu no Pinheirinho.
Os registros mostram claramente que a violência foi excessiva.
Também se pode observar como muitas casas foram arrasadas sem que seus ocupantes tivessem podido retirar seus pertences. Há uma profusão de imagens mostrando móveis, geladeiras e outros equipamentos domésticos destruídos pelas máquinas.
Muito provavelmente aquelas pessoas ainda estão pagando as prestações de seus parcos patrimônios. Mais do que isso, elas tinham o direito de um tempo para recolher documentos, fotografias, brinquedos, amuletos, o que quer que fizesse parte de suas histórias pessoais.
A imprensa deve considerar essencialmente o pressuposto legal da reintegração de posse. Mas num país que ainda é campeão de desigualdades sociais, a análise dos fatos não pode ser feita dessa forma linear, como se vivêssemos na Suécia.
Entre outros elementos, é preciso considerar que os antigos ocupantes do Pinheirinho são tipicamente a classe social que as políticas públicas aplicadas recentemente no Brasil procuram promover.
Eles representam a base da sociedade emergente. Em cima de seus esforços de consumo, na aquisição de geladeiras, móveis, televisores e aparelhos celulares se constrói a economia que faz a alegria dos grandes investidores.
Parte dessa dinâmica se tranforma nos anúncios publicitários que alimentam as empresas de comunicação.
Não se pode escapar à irônica verdade desse fato.
A imprensa brasileira é muito sensível quando se trata da violência estrangeira, dos atentados aos direitos humanos numa ilha do Caribe ou de supostas ameaças à liberdade de informação no outro lado do mundo.
Mas não tem olhos para a barbárie executada com respaldo judicial aqui mesmo.
Cumpra-se a lei – e isso é um pressuposto do bom funcionamento da República. Mas que se cumpra com respeito à dignidade humana.
Um jornalismo decente iria comparar o caso Pinheirinho com a presteza da Justiça e a sanha policial na reintegração de posse de terrenos públicos, por exemplo. Uma pauta minimamente honesta iria buscar as diferenças de tratamento que a Justiça e a polícia dão, por exemplo, a casos como o de Pinheirinho e os das ricas propriedades de veraneio que ocupam terrenos da Marinha ou invadem trechos da Mata Atlântica em todo o litoral do país.
Já não se pode dizer que há uma ironia em tudo isso, porque de ironia em ironia chegamos ao fundo do poço do cinismo.