Tuesday, 23 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

Os outros, onde estão os outros?

 

Completadas duas semanas de intenso bombardeio contra o castelo de moralidade do senador Demóstenes Torres, do Partido Democratas, os jornais começam, finalmente, a apresentar ao leitor o pivô do escândalo, o empresário Carlos Augusto Ramos, conhecido como “Carlinhos Cachoeira”.

Deveria causar estranheza a prática jornalística segundo a qual os agentes públicos envolvidos em casos de corrupção têm que ser sempre a peça central – quando não a única – no noticiário escandaloso. Na terça-feira (3/4), por exemplo, o Globo abre manchete para chamar Demóstenes Torres de “senador do bicho”.

Mas seria ele o único representante dos contraventores no Congresso? E ainda é correto chamar de “contraventores” esse indivíduos envolvidos em uma longa lista de delinquências?

E qual seria, afinal, a posição de “Carlinhos Cachoeira” na estrutura do crime organizado que, misturado a negócios legalizados, espalha-se por todo o país, infiltrando-se nas instituições públicas?

O Estado e o crime

A julgar pelo peso que lhe dá o noticiário em torno do senador Torres, pode-se concluir que se trata de um capo de primeira grandeza, uma espécie de “poderoso chefão” capaz de envolver e seduzir um antigo baluarte da moralidade na política.

Mas ao centralizar suas reportagens no bicheiro goiano, a imprensa nacional deixa na sombra outros protagonistas dessa novela policial muito mais importantes para se entender o processo de contaminação da política por parte de organizações de delinquentes. Alguns desses criminosos circulam alegremente pelos salões do poder há décadas, poupados de escândalos pela pouca capacidade ou pouco interesse de investigação da imprensa.

O jogo do bicho deixou de ser uma atividade inocente há quase um quarto de século. No fim dos anos 1980, jornalistas brasileiros investigavam um movimento de contraventores na organização de grandes negócios de jogo, que envolviam a tentativa de legalizar cassinos e abrir as portas para a exploração de máquinas “caça-níqueis”.

Alguns dos parlamentares eleitos com ajuda da máfia da jogatina se tornaram personagens importantes da República. Os arquivos dos jornais e revistas semanais guardam registros de personalidades que apoiaram esse movimento.

Mas a estratégia dos contraventores era ainda mais ambiciosa: alguns deles estavam articulando o sistema de financiamento do tráfico de drogas. O resultado foi a contaminação das instituições públicas pelas “doações” aos caixas ilegais de campanha – que na verdade são operações financeiras pagas com o dinheiro público.

O “empresário” Walter Spinelli de Oliveira, conhecido como Marechal, foi assassinado no autódromo de Interlagos, em São Paulo, em fevereiro de 1989 porque se negava a permitir que o “negócio” do jogo, uma tradição de sua família, fosse envolvido no narcotráfico.

Ele era a última resistência, entre os chamados “barões” do jogo, na transição entre a folclórica figura do “apontador” e a do investidor oculto, aquele que faz girar a máquina do crime e reinveste os lucros em negócios da mais elevada respeitabilidade.

Sorte e política

A julgar pelo noticiário, a associação entre Carlos Cachoeira e Demóstenes Torres é resultado dessa simbiose, mas está longe de representar o núcleo do sistema de poder que coloca o Estado a serviço do crime. A notícia de que até mesmo o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) pode ter sido envolvido em irregularidade mostra que não há limites para as ambições desse personagem. Mas é apenas um indício de onde podem chegar essas associações.

Um dos escândalos que moveram a imprensa nos últimos anos indicava o interesse de contraventores em controlar o sistema oficial de loterias. Não há registro de que a imprensa tenha se interessado em investigar a hipótese de que algumas loterias estaduais possam de fato ter sido loteadas entre empresários da jogatina. Afinal, como ensinou o ex-deputado João Alves, essa é a maneira mais fácil de lavar dinheiro.

Aliás, o que fizeram os jornais com o dado estatístico segundo o qual Brasília lidera de longe a lista dos ganhadores das loterias oficiais, não apenas em número de sortudos como no valor dos prêmios?

Deve haver uma explicação matemática razoável para esse fato, como a de que os brasilienses costumam apostar mais e em valores mais altos, mas qualquer notícia sobre envolvimento de bicheiros com políticos deveria aguçar a curiosidade dos jornalistas sobre os setores mais obviamente vulneráveis a tais parcerias.

O que se tem noticiado nos últimos dias é mais do que suficiente para definir o destino da carreira política de Demóstenes Torres. Mas ainda está longe de explicar como um chefete do jogo do bicho consegue ir tão fundo em suas relações com o poder público.