Sunday, 22 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

Quando é preciso ser parcial

A semana que passou trouxe alarme social e uma coleção de manchetes inédita e inesquecível para os catarinenses. Por conta da sucessão de ataques de criminosos, a população de dezesseis cidades se sentiu como se vivesse em grandes centros metropolitanos, muitas vezes mergulhados na insegurança pública. Entre a segunda-feira (12/11) e o domingo (18), bases policiais foram alvejadas, ônibus e veículos particulares foram queimados, totalizando 58 ações.

A concentração dos atentados em poucos dias e sua visibilidade foram tantas que as ocorrências no interior de São Paulo e na própria capital paulista chegaram a ser ofuscadas no noticiário nacional. O episódio mostrou a fragilidade da população em ações coordenadas do crime, mas revelou também um lado do Estado que não se quer acreditar e outro da imprensa que os jornalistas teimam em esquecer.

Os dias dos atentados em Santa Catarina tornaram mais nítido para todos que governo, população e imprensa não estão exatamente do mesmo lado. Nos primeiros dois dias de ataques, o Estado insistiu em minimizar as ocorrências, um comportamento padrão repetido em outras geografias. A estratégia está apoiada na ideia não totalmente comprovada de que não se deve dar créditos ao inimigo, sob pena de fortalecer seus atos. O chefe da polícia desdenha das ações, o governador não aparece para dar satisfações, e assim o Estado espera mandar um recado para a população de que tudo está sob controle.

Nos corredores palacianos, de forma subterrânea, o que se vê é a correria, a tomada de decisões intempestivas, a busca de compreensão do que está acontecendo e a tentativa de antecipação dos movimentos do oponente. Seja por questões estratégicas – para não revelar o que está fazendo –, seja por despreparo – para não revelar o que não fez –, o Estado deixa o cidadão comum sem a devida informação. A ironia é que o Estado existe para servir o cidadão, atendê-lo em suas necessidades, protegê-lo.

Tom conciliador

Entre o governo e a população, quem poderia construir pontes de compreensão é o jornalismo. Os meios de comunicação atuariam para desvelar o lado oculto dos ataques, para contrapor as diversas versões dos fatos e para, acima de tudo, tornar o cidadão mais bem informado sobre o que está ocorrendo. Enquanto o Estado se orienta pela busca da ordem – muitas vezes, revestindo seus atos com opacidade –, o jornalismo deveria se guiar pela clareza, pela nitidez dos acontecimentos.

Entretanto, parece vigorar nas redações um raciocínio de que, em tempos de crise, é preciso dar uma trégua ao Estado para que a ordem seja restabelecida. É assim em desastres naturais, em que a mídia tenta atuar como um braço da Defesa Civil, prestando serviços que seriam uma extensão do Estado. Pelo que se viu, isso também acontece diante de ataques coordenados do crime organizado, quando sobressaem os desserviços.

Tão surpresas quanto o cidadão, as redações externam nas manchetes algum despreparo para cobrir o assunto e muito de senso comum. As primeiras páginas gritam com o público, chacoalhando o leitor. Histeria, alarme social e medo coletivo são os espíritos dessas páginas, enquanto a informação vital – aquela que ajuda o leitor a tomar decisão, aquela que o ajuda a compreender o cenário complexo, aquela que permite que ele se proteja –, essa informação vital fica subsumida.

Os dilemas se instalam nas mesas de editores: como dar a notícia na dimensão precisa sem apelar para o sensacionalismo? Se o conjunto de ações é inédito, se sua intensidade é única, como não ressaltar isso nas matérias? Como buscar equilíbrio na cobertura quando a ordem social e a segurança pública se traduzem apenas como expressões nas bocas dos políticos e não nas ruas ou bairros?

O noticiário dos jornais de Santa Catarina oscilou na semana em questão. O Diário Catarinense tentou se conter: “Escolta e ataques” (15/11); “ Deixa eu sair’” (16/11); “Varredura nos presídios começa por Santa Catarina” (17/11); “Por que o terror atacou” (18/11).

O Jornal de Santa Catarina, de Blumenau, mostrou-se distante: “Facção criminosa recruta devedores” (16/11); “O pior presídio” (17/11); “Presos deram ordem para reduzir ataques” (18/11).

Notícias do Dia, oscilou quase de forma errante: “Prisões, mortes e novos atentados” (16/11, edição de Florianópolis); “Atentados em SC – Mais ataques” (16/11, edição de Joinville); “‘O pior já passou’, diz o governo” (Joinville, 17 e 18/11); “Segurança em alerta” (Florianópolis, 19/11); “Cai ritmo dos ataques no Estado” (Joinville, 19/11).

A Notícia, o segundo maior jornal catarinense, só despertou quando a onda chegou perto da sede, em Joinville: “Estado em alerta: Ataques chegam ao norte” (18/11).

Deliberadamente mais impactante, a Hora de Santa Catarina intensificou a sensação geral de insegurança com seis manchetes: “Noite de ataques” (12/11); “A que ponto chegamos” (13/11); “Isso, sim, é o fim do mundo” (14/11); “Quatro noites de terrorismo” (16/11); “Medo coletivo” (17/11); “Escoltas até quarta-feira” (19/11).

Curiosamente, o diário que mais traduziu o sentimento geral da população é o que adota estética mais chamativa, linguagem direta e cobertura superficial. Mas também o que não assumiu o discurso tranquilizador insistido pelas autoridades, destoando dos demais, mesmo que cometendo alguns exageros.

Parcialidade sim!

A onda de ataques do crime organizado trouxe (mais uma vez) à tona que as redações podem padecer de uma certa miopia sobre o seu papel na sociedade. Embora o Estado tenha, constitucionalmente, o dever de proteger o cidadão, não são raras as vezes em que deixa o contribuinte sem informação ou sem serviços básicos. Nessas ocasiões, prevalecem as razões de Estado que podem colidir com o interesse público: para manter uma ordem aparente, as autoridades negam a realidade e ocultam informações importantes, alimentando a sensação de incerteza geral. De forma inaceitável, o Estado “protege” o cidadão da informação que não lhe poderia ser sonegada.

O jornalismo não tem que estar ao lado do Estado, mas sim da população. Nem sempre são coincidentes as posições do governo e do cidadão, pelo que se pode ver. Na guerra das versões, o sujeito das ruas fica sem amparo, sem saber, seja porque o Estado lhe nega, seja porque os jornalistas não lhe fornecem.

Num cenário de crise de confiança e de solvência, o jornalismo – cada vez mais! – precisa ficar ao lado da população, quando ela assiste bestializada à sucessão de ataques, da qual é a vítima mais evidente. Embora os ataques tenham sido contra algumas bases policiais, é o cidadão que mais sofre nessas ocasiões, pois é ele quem sai às pressas do ônibus prestes a ser incendiado; é ele quem se sente acuado pelo crime, pois não tem armas ou instrumentos de inteligência para reagir eventualmente.

O Estado deve ser indagado pelos jornais; os repórteres não podem fazer as vezes de meros porta-vozes do governador para acalmar o cidadão; as redações devem buscar formas próprias de extrair as informações que o público espera e necessita; a polícia e os demais aparatos estatais não podem ser os únicos lados da história, e os detentores das versões mais privilegiadas. Isto é, o jornalismo precisa deixar de lado o pudor de ser parcial nessas ocasiões, e tomar o partido da população, mesmo que isso implique contrariar os interesses de um governo ou de outro.

O descalabro dos presídios, as condições precárias em que vivem os policiais, a incapacidade do Estado de garantir a segurança de todos, o torpor e a própria desinformação governamental sobre os movimentos do crime organizado, tudo isso deve estar na pauta jornalística. Mas tão importante quanto ela é a clareza que repórteres e editores devem ter sobre o papel a ser assumido nessa história toda: o jornalismo tem lado, e esse lado é o do público, não o das autoridades, dos conglomerados econômicos ou dos núcleos de poder.

Fortalecer os laços da confiança que a população deposita sobre a mídia é essencial para um novo cenário comunicacional. Não só para “salvar” os veículos de informação, mas para fazer valer sua finalidade pública e sua justificativa social.

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[Rogério Christofoletti é professor da Universidade Federal de Santa Catarina e pesquisador do objETHOS]