Thursday, 14 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1314

Quem disse que internet é terra de ninguém?

Guardei silêncio durante dez meses sobre uma ofensa intolerável que me foi feita no Twitter, um dos territórios livres da internet. Eu poderia sair atirando petardos virtuais contra quem me agrediu, mas preferi recorrer à Justiça. Queria criar um precedente que considero importante: não, ninguém pode usar a internet (nem que seja um mero tweet – uma frase de míseros 140 caracteres) para atacar os outros impunemente. Não pode. No pasarán

A boa notícia é que a Justiça, afinal, se pronunciou – a meu favor. Respiro aliviado. Fiz a minha parte: queria provar que não, internet não é lixeira. Se alguém escreve um absurdo (não importa que seja numa página lida por três gatos pingados), deve responder por ele. Por que não? Eu não poderia ficar calado.

Resolvi adotar como lema o verso bonito de “Consolo na Praia”, aquele poema de Carlos Drummond de Andrade: “À sombra do mundo errado, murmuraste um protesto tímido”. É o que tentei fazer – em 99% dos casos, sem qualquer resultado. Neste caso, ao murmurar meu “protesto tímido”, tentei, na verdade, defender o bom Jornalismo na selva da internet. O bom Jornalismo. Tão simples: é aquele que, entre outras virtudes, não comete calúnia nem injúria nem difamação. Diante do pronunciamento da Justiça, tive vontade de gritar: é gol! O Jornalismo venceu.

[Pequeno esclarecimento aos caríssimos ouvintes: ao contrário do que o grito de gol imaginário possa sugerir, minha relação com o Jornalismo é profundamente acidentada. Detalhes no final do texto (*).]

Citação dispensável

O fato de me julgar um perfeito alienígena no Planeta Jornalismo não me impede de defender o Jornalismo na hora em que as tropas inimigas se aproximam. Bem ou mal, é a atividade que, já por tanto tempo, consome minhas parcas energias. Lá vou eu, então, para a Sala de Justiça.

A internet é a maior invenção dos últimos séculos? É provável que seja. Quem imaginaria a vida sem um terminal de computador? Quase ninguém. Hoje, qualquer um pode criar, em um minuto, uma conta no Twitter ou no Facebook ou no Orkut ou num hospedeiro de blogs para se manifestar sobre o que bem entender. Em questão de segundos, qualquer texto, qualquer imagem, qualquer frase, qualquer pensamento podem ser replicados incontáveis vezes. Eis a oitava maravilha do mundo!

Em meio a tantas maravilhas, uma dúvida vibra no ar: que proteção existe contra o internauta que usa o Twitter, por exemplo, para atingir a honra alheia? Agora, posso dizer: a Justiça. Há uma dificuldade: nem sempre é fácil localizar o autor da ofensa. A autoridade judiciária me disse – com razão – que a Justiça talvez não tenha como localizar e intimar um agressor que se esconde sob pseudônimo na imensa floresta da internet. Se o autor é “encontrável”, pode acabar “nas barras dos tribunais”, como se dizia.

Em resumo: abri um processo por calúnia, injúria e difamação contra o autor de um comentário ofensivo publicado no Twitter. O que dizia o comentário estúpido? Que eu simplesmente tinha “roubado” de um trabalho de conclusão de curso de alunos de Jornalismo as perguntas que fiz a Geraldo Vandré, o compositor que resolvera quebrar o silêncio depois de passar trinta e sete anos sem dar entrevista para TV. É óbvio que, diante da chance raríssima, fui – voando – ao encontro do enigmático Vandré. Que jornalista não teria a curiosidade de ouvir um grande nome que sumira do mapa por tanto tempo? Mas a última coisa que eu faria, na vida, seria “roubar” perguntas de quem quer que seja. 

A entrevista foi ao ar na Globonews, em setembro de 2010 (assista aqui). Diante da ofensa publicada no Twitter, parti para a briga. O juiz remeteu o processo ao Ministério Público. O passo seguinte: uma audiência preliminar no Quarto Juizado Especial Criminal, no Leblon, às 14h45 da terça-feira, 26 de julho do ano da graça de 2011.

Não tinha sido difícil achar o autor da ofensa publicada no Twitter: é um jornalista que trabalha numa emissora de rádio importante de São Paulo. Imagino que tenha poucos anos de formado. Salvo algum desvio, deverá ter uma carreira pela frente. Vou, aqui, ter um gesto de “magnanimidade” que o autor da agressão não teve para comigo: não vou citar nomes, para não prejudicá-lo nem deixar rastros na internet. Idem com a mulher que repetiu a ofensa e chamou a entrevista de “farsa” num comentário enviado a um site (neste caso, a dificuldade citada pela autoridade judiciária se confirmou: não foi possível localizá-la). Também não vou citar, aqui, o nome desta pobre coitada. Tenho perfeita noção de como funciona este circo: qualquer referência que “caia na rede” virá sempre à tona a cada vez que alguém fizer uma busca no Google…

A citação dos nomes envolvidos no processo 0336624-21.2010.8.19.0001, em última instância, nem é indispensável. O que vale, neste caso, é o exemplo, a situação, a tentativa (bem sucedida) de abrir um precedente.

Sem desculpas

Chegou a hora da audiência. O sistema de alto-falantes do Quarto Juizado Especial Criminal chama os envolvidos no caso. Sou citado como vítima. Dentro da sala, o clima era de constrangimento absoluto. O autor da agressão no Twitter tinha vindo de São Paulo, acompanhado de um advogado: estava sentado do outro lado da mesa, diante de mim. Ao meu lado, estava o advogado Marcelo Alfradique.

Sem falsa modéstia, sou um orador que, num julgamento generoso, poderia se situar na tênue fronteira entre o ruim e o péssimo. Não me arriscaria a falar de improviso, mas não queria de maneira alguma perder a chance de marcar posição. Rabisquei, então, o que eu gostaria de dizer diante de uma autoridade da Justiça e de quem usou o Twitter para cometer uma agressão intolerável.

Pedi a palavra. Já engoli sapos monumentais, gigantescos, monstruosos ao longo da vida. Mas, ali, era hora de soltar os cachorros:

“Quero dizer que, para mim, o fato de estar aqui é constrangedor. É a primeira vez que processo alguém. Fiz questão absoluta de recorrer à Justiça porque somente a Justiça poderia dar uma lição que me parece indispensável: ninguém pode usar impunemente a internet para escrever o que quiser e agredir a honra alheia. Uma das obrigações do jornalista é usar as palavras com toda precisão possível. Se escrevo que alguém “roubou” alguma coisa, eu o estou chamando de “ladrão”. Ponto. Quem comete uma farsa é um farsante. Ponto. Fui chamado – portanto – de ladrão e farsante pelo crime de ter feito uma entrevista com Geraldo Vandré! O caso é tão absurdo que nem vale a pena entrar em detalhes.

“O que aconteceu? Uma jornalista me enviou um trabalho de conclusão de curso sobre Geraldo Vandré. Meses depois, fui escalado, às pressas, na TV, para gravar uma entrevista com ele. A produtora Mariana Filgueiras conseguira marcar uma entrevista com Vandré, no dia em que ele completava 75 anos de idade. Eu nem tinha lido o trabalho enviado pela estudante, por pura falta de tempo. Todo o mérito da obtenção da entrevista com Vandré, aliás, cabe à produtora, algo que digo com toda clareza no texto do programa. A produtora, igualmente, não tinha lido o trabalho.

“Quando a entrevista foi ao ar, na Globonews, fui acusado publicamente – ou seja: através da internet – de ter “roubado” as perguntas do trabalho escolar que me fora enviado. Como se, depois de quase quarenta anos de profissão, eu precisasse recorrer a um trabalho escolar para fazer as perguntas de uma entrevista! Comecei a trabalhar cedo, aos 16 anos de idade, em 1972. Perdi a conta das entrevistas que fiz – com presidentes da República, políticos, artistas, escritores, atletas, gente anônima e famosa, aqui e no exterior. Nunca – repito: nunca, jamais, em tempo algum – fui acusado de falta de ética ou de imprecisão ou de “roubar” o que quer que seja.

“Não quero fazer bravatas. Mas agora, diante de uma autoridade, nesta sala de Justiça, quero declarar oficialmente o seguinte: se o autor da agressão provar que “roubei” perguntas seja de quem for, ao longo desses 39 anos de profissão, eu assino um documento legal transferindo para ele tudo o que eu vier a receber como pagamento por minha atividade profissional de hoje até o fim da minha vida. Isso não é uma bravata. É um compromisso.

“Fui chamado – em público – de ladrão e farsante. Fiquei em silêncio até agora. Não escrevi nada sobre o ataque porque preferi aguardar a palavra da Justiça. Se eu chamasse publicamente os autores da agressão de ‘ladrões da honra alheia’, estaria usando a mesmíssima arma que usaram contra mim, irresponsavelmente. Não.

“Para ilustrar o absurdo da situação: em 2005, como editor-chefe da revista Almanaque Fantástico, publiquei uma reportagem sobre Geraldo Vandré, escrita por um colega de redação, Alberto Villas. Se eu quisesse cometer uma ignomínia igual à que foi cometida contra mim, eu poderia acusar os autores do trabalho de escolar de terem “roubado” a pauta da revista do Fantástico. Mas eu não seria tão estúpido.

“Uma ofensa cometida na internet se multiplica rapidamente. Depois da publicação da ofensa no Twitter, ‘X’ – que não conheço – escreveu numa caixa de comentários de um site o seguinte: ‘Existe um livro do qual o repórter está de posse e do qual foram `sugadas´ as perguntas’. Logo depois, um ex-cineasta chamado “Y” insinuou, com ironia, que minha entrevista foi ‘inspirada’ no trabalho dos alunos… Ou seja: repassaram a calúnia ( aqui, omito nomes).

“Isso virou ponto de honra para mim. Faço questão absoluta de que os autores da ofensa provem que sou ladrão de perguntas e farsante. O patrimônio profissional mais valioso que um jornalista pode obter é a credibilidade. Isso é conquistado em anos, anos e anos de trabalho duro e dedicação. É uma questão de caráter, também. Não posso aceitar, sob hipótese alguma, que algo conquistado com tanto esforço, com tantas madrugadas de trabalho, com tantos fins de semana – em que eu deveria estar convivendo com meus filhos – seja atacado de maneira tão irresponsável. Não, não e não. Não me interessam desculpas. Não, não e não. Não me interessam recompensas financeiras. Não, não e não. Se houver, que seja doada à escola mais necessitada do sertão do Piauí ou à creche mais pobre da Favela da Rocinha.

“A única coisa que, sinceramente, espero é que a Justiça mostre, a todos os blogueiros, a todos os twitteiros, a todos os internautas – a mim, inclusive – que abusos deste tipo não podem ser cometidos, impunemente, via internet – que corre o risco de virar Terra de Ninguém. Não, não e não”.

Preparem os cheques

O autor da ofensa ouviu tudo calado. Não disse uma palavra sequer. Só deu uma “justificativa”, no início da audiência: disse que tinha escrito o tweet em “solidariedade” à amiga que me enviara o malfadado trabalho de conclusão de curso sobre Geraldo Vandré. A Justiça se pronunciou. Desta vez, quem recebeu solidariedade fui eu.

Uma alternativa me foi oferecida: se eu não quisesse dar o caso por encerrado ali, poderia levar o processo adiante, para a esfera criminal. Em suma: poderia pedir uma indenização pela injúria, pela calúnia, pela difamação. Preferi dar o caso por encerrado, porque, na prática, já tinha conseguido o que queria: uma demonstração de que, no território livre da internet, ninguém pode escrever, impunemente, contra a honra alheia. 

Pelo menos neste caso, pude ver que a internet nem sempre é terra de ninguém. Twitter não é lixeira: é um meio de comunicação importante. Idem com o Facebook, o Orkut, os blogs – e todas as outras plataformas. O que se escreve ali pode ter consequência. Devem ser usados, portanto, com responsabilidade.

Preferi não prolongar o trabalho que estava dando à Justiça – que, como se sabe, já vive sobrecarregada. Dei-me por satisfeito.

A autoridade determinou que o autor da ofensa no Twitter prestasse 20 horas de serviço comunitário numa das instituições cadastradas no Quarto Juizado Especial Criminal – ou então fizesse um pagamento que, a bem da verdade, me pareceu simbólico: 600 reais. O dinheiro é recolhido pela Justiça e repassado a uma das instituições habilitadas para receber a ajuda. Detalhe: nestes próximos cinco anos, caso reincida, o autor já não poderá dispor do benefício da “transação penal” (ou seja: uma espécie de acordo que susta a evolução do processo, como aconteceu agora).

Terminei mostrando que agressão infundada e gratuita – ainda que seja cometida no espaço ínfimo dos 140 caracteres de um tweet, numa página com poucos seguidores – pode levar o autor a enfrentar o constrangimento de ouvir, diante de uma autoridade, palavras que ele certamente não gostaria de ter ouvido. Se pudesse escolher, eu não gostaria de ter dito. Mas, ali, eu não tinha escolha. Era “ponto de honra”: eu confiava que a Justiça iria criar um precedente.

Atenção, todos os carros; atenção, twitteiros, facebookeiros, blogueiros, orkuteiros: a tribuna da internet é livre, mas, quando forem escrever, meçam as palavras, como fazem jornalistas responsáveis. Ou então tratem de ir preparando os cheques: as instituições de caridade cadastradas na Justiça vão agradecer penhoradamente a ajuda, ainda que forçada.

Em tempo

(*) Ah, sim: como eu ia dizendo antes de ser interrompido pela narração de minha incursão pelos corredores da Justiça, minha relação com esta joça popularmente conhecida como Jornalismo é acidentada. Meu demônio da guarda me sopra de meia em meia hora, ao pé do meu ouvido esquerdo:

“Get out! Get out! Get out! Bata em retirada! Baixe a cortina! O Jornalismo não é, nem de longe, o que você pensava quando chegou numa redação aos 16 anos de idade! Você era um inocente imberbe, achava que fazer Jornalismo era simplesmente contar da maneira mais atraente possível o que você tinha visto e ouvido na rua, era descobrir personagens fascinantes que ninguém conhecia, era se esforçar para fazer as perguntas certas na hora certa a anônimos ou famosos, era tentar retratar da maneira mais fiel a Grande Marcha dos Acontecimentos, era olhar a vida como se fosse uma criança que estivesse vendo tudo pela primeira vez, era devorar todos os jornais e revistas que lhe caíam nas mãos para aprender com quem sabia fazer, era não deixar jamais que o veneno do engajamento político contaminasse o exercício da profissão, era ler e reler os textos dos mestres, era ter a certeza de que não existe assunto desinteressante: o que existe é jornalista desinteressado. Quá-quá-quá! Deixe de ser estupidamente ingênuo! Jornalistas de verdade jogam notícia no lixo; criam dificuldade para tudo; apostam na mesmice mais cinzenta; deixam de publicar uma história interessante porque ‘a concorrência já deu’; fazem Jornalismo pensando nos outros jornalistas, não no público; pontificam sobre todos os temas do Universo; participam de campeonatos de vaidade; escorregam na autorreferência obsessiva, na pretensão descabida, no egocentrismo delirante, no exibicionismo vulgar. Os jornalistas estúpidos, feito você, acham que é tudo um absurdo indefensável. Para que, então, prolongar este equívoco? Get out! Get out! Get out! Mas você não me obedece. Você, bobo, tenta preservar os sinais vitais do menino ingênuo que, lá atrás, apostou no Jornalismo. Você sabe que a tentativa é rigorosamente inútil, mas é a única coisa a fazer. Continue tentando, então. Pode ser divertido!” . 

Depois de me soprar estas palavras, num ritual que se repete há anos, meu demônio da guarda se recolhe, sorridente, porque tem certeza de uma coisa: quase nunca eu o obedeço, mas, no fundo, sei que ele tem toda razão.

***

[Geneton Moraes Neto é jornalista da TV Globo/Rio, autor de Dossiê Brasília: os Segredos dos Presidentes e Dossiê Drummond]