Saturday, 23 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Quem é dono das biografias?

Mais um capítulo na polêmica em torno da publicação de biografias não autorizadas. A associação Procure Saber, que reúne nomes como Roberto Carlos, Caetano Veloso, Gilberto Gil e Chico Buarque, criticou a comercialização de biografias sem o aval do personagem ou de seus herdeiros. O grupo defende que “direitos e obrigações sejam iguais para os dois lados” e critica o fato de os autores lucrarem com a privacidade. A associação garante que quer apenas regular, não censurar. O Procure Saber defende que a inviolabilidade da vida privada tenha o mesmo peso da liberdade de expressão. O cantor Djavan chegou a afirmar que “editores e biógrafos ganham fortunas enquanto aos biografados resta o ônus do sofrimento”.

A repercussão foi imediata e o caso chegou à Feira de Frankfurt. O escritor Laurentino Gomes disse que o Procure Saber, ao defender seus interesses, limitará a liberdade de expressão. Outros artistas e intelectuais deram declarações a favor da publicação de biografias não autorizadas. No domingo (13/10), o cantor Caetano Veloso voltou a falar sobre o assunto. O artista alegou que a relação entre liberdade de expressão e direito à privacidade é delicada. Para o ombudsman da Folha de S.Paulo, os principais artistas envolvidos não deveriam se esquivar do debate público.

Desde abril, um projeto de lei que permite a exibição de cinebiografias ou biografias impressas sem a autorização prévia aguarda apreciação na Câmara dos Deputados. O texto já estava pronto, mas um recurso obrigou que o tema fosse discutido em plenário. A Associação Nacional dos Editores de Livros move uma ação no Supremo Tribunal Federal (STF) questionando o Código Civil, que impede a publicação sem autorização prévia. O presidente do STF, Joaquim Barbosa, manifestou-se a favor da publicação das obras, mas sugeriu indenizações mais pesadas para quem se sentir prejudicado.

O Observatório da Imprensa exibido ao vivo na terça-feira (15/10) abriu espaço para este tema com a presença de três jornalistas que publicaram biografias. No Rio de Janeiro, participaram Mário Magalhães e Ernesto Rodrigues. Magalhães lançou Marighella – O guerrilheiro que incendiou o mundo. É finalista do Prêmio Jabuti de 2013, na categoria biografia, trabalhou nos principais jornais do país e foi ombudsman da Folha de S.Paulo. Ernesto Rodrigues passou pelas redações de O Globo, Jornal do Brasil, IstoÉ, Veja e TV Globo. Foi ombudsman da TV Cultura de São Paulo. É autor de Ayrton, o herói revelado e Jogo Duro – A história de João Havelange. Acaba de lançar o documentário Conversa com JH, sobre os bastidores da biografia do ex-presidente da Fifa. Em Brasília, o programa recebeu Leonencio Nossa, de O Estado de S.Paulo, autor de Mata! – o Major Curió e as guerrilhas no Araguaia, entre outras obras.

Importante, mas não urgente

Em editorial, antes do debate no estúdio, Alberto Dines sublinhou que apesar de o tema ser relevante, a velocidade que ganhou nos últimos dias não é justificada. “A cada novo lance da polêmica fica evidente que o coletivo de astros da música popular entrou ingenuamente nesta inglória cruzada porque foram orquestrados por duas empresárias – a de Caetano Veloso e a de Gilberto Gil – empenhadas em defender a sua ‘mercadoria’, os seus interesses pecuniários”, disse. Na avaliação de Dines, elas esquecerem que esses artistas são valorizados justamente pela sua transparência.

A reportagem exibida antes do debate ao vivo ouviu a opinião do jornalista e biógrafo Lira Neto, que acaba de publicar o segundo volume da sua biografia do ex-presidente Getúlio Vargas. “A não ser que os artistas achem que compõem uma classe especial de pessoas, uma casta acima da sociedade, do comum dos mortais, eles estão propondo algo que é absolutamente inadmissível. Ou seja, você tem uma lei restritiva para uma determinada categoria de pessoas. Se você leva isso para um grupo maior, a sociedade como um todo, você impede que políticos corruptos, por exemplo, sejam alvo de biografias não autorizadas. Vamos supor que eu desejasse – como eu fiz, inclusive – [produzir] a biografia do Castelo Branco, o marechal que inaugurou a ditadura, a partir do golpe de 1964, e tivesse que pedir autorização à família do Castelo Branco – e mais ainda, tivesse que pagar um royalty qualquer à família para contar a história do ditador. É algo absolutamente insustentável, insano”.

Lira Neto acredita que os artistas não tenham atentado para o detalhe de que a proibição inviabiliza a própria narrativa histórica. “Não é somente a biografia que está correndo perigo, não é só o gênero biográfico que está ameaçado. Qualquer pessoa que se sinta ofendida por um livro qualquer pode requerer os mesmos direitos. É hora de não só os jornalistas, não só dos biógrafos, mas dos historiadores entrarem nessa discussão. Os historiadores precisam discutir o que isso significa e alguém provocar alguma luz na cabeça de pessoas que todos nós admiramos – como Chico Buarque, Caetano, Milton –, que talvez não estejam percebendo o verdadeiro alcance nefasto dessa tese”, alertou o biógrafo.

O deputado Alessandro Molon (PT-RJ), relator da Lei das Biografias na Comissão de Constituição e Justiça da Câmara dos Deputados, disse que a polêmica das últimas semanas pode atrapalhar o andamento do projeto e impactar a decisão do STF na Ação Direta de Inconstitucionalidade movida sobre esse tema: “No caso de pessoas públicas, a minha interpretação é de que o direito à privacidade deve ter um peso menor do que a liberdade de expressão de autores, escritores, jornalistas, biógrafos e também o direito à informação do público sobre a vida dessas pessoas, de forma que se o direito à privacidade deve ser protegido para todos, as pessoas que escolhem uma vida pública acabam tendo a propensão a esse direito um pouco reduzida em relação a uma pessoa comum”.

Direitos em conflito

Para o jurista José Paulo Cavalcanti Filho, biógrafo de Fernando Pessoa, o direito à privacidade e o direito de liberdade de expressão são fundamentais para a democracia. Para ele, é preciso integrar as duas garantias constitucionais. “Eu proponho que a gente tenha o exercício dos dois direitos, e quem quiser publicar uma biografia, publique o que quiser, se tiver receio peça autorização do interessado ou da família”, disse. “Quem não gostar, entra com uma ação e obtém indenização proporcional ao dano.”

O escritor e músico Jorge Mautner defendeu o Procure Saber. “Existe salvaguarda do direito individual, do direito de foro íntimo, dos segredos da pessoa, enfim, de partes da intimidade que ela não quer que saibam. Não quer que o filho saiba, a esposa saiba, os amigos, imagina então o resto do mundo. De resto, também tem o aspecto financeiro”. Mautner acrescentou que há uma pressão em torno dos artistas e que o grupo tem sido tratado como se fossem “canalhas” ou traidores. O clima é de linchamento contra pessoas que contribuíram para a história do Brasil.

“Eu acho que aí se junta o desejo de artista famoso, invejado, e as pessoas desejam que ele caia. Para mim essa lei é para defender isso, é para impedir inclusive atritos desnecessários e injustiça que caia sobre segundos e terceiros. Porque todos esses citados são libertários. Tem também o mito de que eles são as pessoas mais determinantes. Eu acho que é mais uma atitude desses grandes artistas protegendo suas atitudes de foro íntimo. Para as crianças não pegarem bullying, até coisas piores – chantagens, principalmente isso. Ninguém é santo, biógrafo também não é santo, e nem os artistas.”

Conhecer a história

No debate ao vivo, Dines comentou com Mário Magalhães que a polêmica não envolve apenas biógrafos e biografados e que o renascimento desse gênero literário no Brasil se deve ao trabalho dos jornalistas. De acordo com Dines, a maioria das biografias mais consagradas foi escrita por jornalistas que não tinham espaço para desenvolver esse tipo de trabalho nas redações. Para o biógrafo de Marighella, o direito do conhecimento está em jogo. O Magalhães disse que a censura prévia não cabe nos dias de hoje. A pessoa que se sentir difamada ou invadida deve recorrer à Justiça, que deve ser célere e dura.

“Uma figura pública, como o coronel reformado Carlos Alberto Brilhante Ulstra, um dos mais importantes torturadores da ditadura instaurada em 1964, para fazer uma biografia hoje, a partir do Código Civil de 2002, sobre esse torturador, esse monstro que comandava um campo de concentração onde morreram mais de 50 brasileiros e boa parte não teve o corpo nem entregue para as famílias, hoje é preciso pedir autorização para o coronel Ulstra. Que tipo de história nós vamos legar para o futuro, que tipo de país vamos construir só com relatos chapa-branca?”, questionou Magalhães.

Para fazer a biografia de Carlos Marighella, o jornalista contou que utilizou um vasto arquivo documental e bibliográfico, ouviu mais de 200 entrevistados e que não teria um resultado positivo se a viúva e o filho do personagem tivessem criado empecilhos jurídicos para a publicação da obra. Magalhães não pediu autorização e nem submeteu os originais do livro à apreciação dos herdeiros. A família entendeu que não monopoliza a verdade e que era democrático que houvesse diferentes relatos sobre Marighella. “As pessoas são donas da sua vida, mas não são donas da história”, ponderou o jornalista.

Mário Magalhães refutou a acusação de que os biógrafos e editores lucram altas somas com os livros. Para ele, não se pode demonizar os artistas do Procure Saber, mas o comentário do cantor Djavan soou ofensivo. “Eu abri mão de muita coisa na minha vida. A minha ideia era contribuir para o país conhecer um pouco melhor a sua história”, disse Magalhães. Durante 69 meses, o jornalista não recebeu salário porque abriu mão do trabalho de repórter. Somando os quase 30 mil exemplares da biografia de Marighella que foram vendidos e os direitos que receberá para a adaptação cinematográfica da obra, o escritor ganhará 15% do que receberia como repórter de jornal.

Luta antiga

Leonencio Nossa ressaltou que o debate veio à tona porque artistas importantes no contexto da redemocratização se posicionaram contra o projeto de criar a lei atual sobre o tema. Nossa lembrou que hoje a discussão sobre o assunto parece uma “guerra”, mas há mais de uma década a situação para os biógrafos é de insegurança: “A censura, de certa forma, já existe. Você tem uma lei de 2002, a lei 10.406, que deu a qualquer pessoa o direito de tirar do mercado uma biografia pelos motivos mais banais. Pela legislação atual, se tiver fins comerciais, ela depende de uma autorização prévia. Essa é uma luta antiga, que já tem onze anos, dos jornalistas biógrafos”. Dessa forma, os escritores não têm garantias de que o projeto de contar determinada história vá chegar às mãos do leitor.

O jornalista contou que durante os dez anos em que esteve envolvido na preparação do livro viveu um clima de apreensão. “Havia a preocupação de que um ex-major do Exército entrasse na Justiça para barrar o projeto. Eu tive advogados que chegaram a entrar na Justiça para recolher os meus documentos. E olha que são advogados que aparentemente defendiam os direitos humanos”, contou Nossa. Foi necessário desenvolver uma relação de confiança com o major Curió para que o militar passasse as informações essenciais à obra. “Uma coisa que sempre tive na cabeça: eu queria fazer esse livro e eu ia fazer. Eu ia brigar para mostrar para o país o que ocorreu no Araguaia”, disse Nossa.

Dines afirmou que os jornalistas enfrentaram 21 anos de censura durante a ditadura militar e agora estão confrontados com um novo enfrentamento, justamente com parceiros da luta pela liberdade de expressão. Ernesto Rodrigues ressaltou que há uma visão “grosseira” sobre o trabalho dos biógrafos, como se fossem levianos e colocassem apenas a sua visão pessoal sobre o personagem. Para escrever duas biografias, Rodrigues entrevistou cerca de 400 pessoas. “Existem muitos olhares. Existem mais de cem biografias sobre o John Kennedy, do Stalin, do Hitler, de Lincoln. E tem uma ironia nessa história. O nome da associação é Procure Saber. A nossa profissão é essa, é procurar saber. Eu acho que isso é um absurdo. Lamento profundamente que quatro gênios da nossa música estejam à frente de um movimento tão equivocado como este”, disse o jornalista.

Família parceira e família inimiga

Ernesto Rodrigues contou que recebeu da família de Ayrton Senna uma carta dizendo que o livro não seria uma obra oficial, mas que não se opunha ao projeto. Na opinião do jornalista, a família do piloto não atrapalhou as pesquisas nem impediu que pessoas relacionadas à família concedessem entrevistas. Apenas determinou que nenhum familiar seria ouvido porque queriam guardar os depoimentos para uma possível obra oficial. “Biografia é, sim, um pouco de intimidade. Você quer ser íntimo das pessoas. Fazer uma boa biografia é você compartilhar a vida de alguém que é importante de alguma maneira para você”, disse o jornalista.

Já a relação com João Havelange foi tão complexa que acabou gerando o documentário Conversa com JH, sobre os bastidores do drama envolvendo a publicação da obra. O livro foi feito em um clima de intimidação. O personagem assinou um termo de anuência para que Rodrigues pudesse escrever, mas exigiu ler os originais. Ao aceitar, o escritor advertiu que a palavra final seria a do autor da obra. A reação do personagem ao receber o material foi violenta: “Fizemos uma leitura conjunta, traumática, durante onze reuniões, linha por linha do livro”, contou o jornalista. O áudio desses encontros, captado com a autorização de Havelange, foi transformado em um importante anexo da biografia.

Rodrigues avalia que a obra acabou tendo algumas passagens cuidadosas demais porque parte das denúncias não podia ser comprovada na ocasião. As vendas do livro, sete anos após a publicação, ainda não cobrem o adiantamento que a editora concedeu ao escritor. Em tom de brincadeira, o jornalista comentou que o pensamento “mercantilista” de alguns artistas. “Levando adiante essa tentativa de eles transformarem tudo em uma mercadoria, não seria o caso de o Roberto Carlos pagar royalties ao Banco do Vaticano pela música Jesus Cristo? Ou o Gilberto Gil parar para a prefeitura do Rio, para o Chacrinha, por causa da música Aquele Abraço?”, sugeriu o convidado.

 

Censura prévia a biografias

Alberto Dines # editorial do Observatório da Imprensa na TV nº 705, no ar em 15/10/2013

Com a entrada em cena do presidente do STF, Joaquim Barbosa, a questão do embargo às biografias não autorizadas ganhou status de problema nacional. É um bom debate, suscita questões da maior relevância como a liberdade, afeta um segmento literário que faz enorme sucesso junto ao público leitor, mas, convenhamos, não é premente e a sua velocidade, injustificada.

A cada novo lance da polêmica fica evidente que o coletivo de astros da música popular entrou ingenuamente nesta inglória cruzada porque foram orquestrados por duas empresárias – a de Caetano Veloso e a de Gilberto Gil – empenhadas em defender a sua “mercadoria”, os seus interesses pecuniários. Elas esquecerem que esses produtos valem ouro porque são adorados por legiões de admiradores que há algumas gerações adoram os seus acordes, adoram os seus versos e, sobretudo, adoram a sua transparência.

A bandeira da proteção à privacidade é um enfeite de ordem moral, mera maquiagem porque os sete grandes artistas que fundaram o coletivo Procure Saber não se importam que se saiba tudo sobre eles. Construíram as admiráveis carreiras porque são diáfanos, inequívocos, jamais se importaram que se saiba tudo a seu respeito – das suas posições políticas, às paixões.

É preciso não esquecer que a biografia no Brasil começou a ganhar importância quando profissionais da imprensa experientes e qualificados, sem espaço para desenvolver um trabalho mais gratificante nos jornais, revistas, rádios e televisões, resolveram transferir para o livro sua capacidade de humanizar, reconstituir existências e tempos passados.

Quando o jornalista Raimundo Magalhães Júnior escreveu Rui, o homem e o mito, em 1964, não foi pedir licença aos herdeiros de Rui Barbosa. De certa forma desconstruiu uma das glórias da cultura brasileira, mas o fez com um trabalho de investigação irrepreensível. Causou alvoroço, furor, foi contestado, mas ninguém exigiu indenização nem cobrou um percentual sobre as vendas do seu livro.

Estamos assistindo a um dos últimos espasmos do autoritarismo e o fato de que seus protagonistas tenham sido suas vítimas no passado traz para o episódio uma nota irônica e melancólica que convém não aumentar. Poetas e cantores deveriam buscar a verdade em vez de tentar escondê-la.

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Lilia Diniz é jornalista