O responsável por um importante inquérito sobre os padrões de conduta dos jornais britânicos – que explodiu em decorrência do escândalo dos grampos telefônicos protagonizado pelo jornal News of the World – produziu uma crítica condenatória da imprensa como um todo na quinta-feira (29/11), dizendo que ela mostrou “uma significativa e temerária indiferença pela precisão” e recomendou que a imprensa criasse um regulador independente a ser respaldado por lei. “Um número demasiado de matérias, num número demasiado de jornais, foi submetido a queixas por um número demasiado de pessoas, com os jornais assumindo demasiado pouco em termos de responsabilidade ou considerando as consequências para os indivíduos envolvidos”, disse o juiz Lorde Brian Leveson num resumo de 46 páginas das descobertas feitas por seu tão esperado relatório, de 1.987 páginas, publicado em quatro volumes.
“Agora, é novamente a vez dos políticos”, disse Sir Brian referindo-se a que forma as novas e mais rigorosas regulações devem obedecer. “Cabe a eles decidir quem guarda os guardiões.”
O relatório foi publicado após terem sido ouvidas 337 testemunhas ao longo dos nove meses de audiências que procuraram desemaranhar os estreitos vínculos existentes entre os políticos, a imprensa e a polícia. “Este inquérito foi a análise mais acurada da imprensa que este país já viu”, disse Brian Leveson.
Órgão regulatório independente
Entretanto, numa primeira reação, o primeiro-ministro David Cameron resistiu à recomendação do relatório de que uma nova forma de regulação da imprensa deveria ser respaldada por leis, dizendo aos legisladores que eles “deveriam tomar cuidado” ao “atravessar o Rubicão”, aprovando uma legislação com o potencial para limitar a livre expressão. As observações de Cameron foram imediatamente criticadas pelo líder da oposição trabalhista, Ed Miliband, que disse que as propostas do juiz Leveson deveriam ser aceitadas na íntegra.
O primeiro-ministro ordenou a instalação do Inquérito Leveson em julho de 2011, justamente quando o escândalo dos telefones grampeados pelo News of the World veio a público causando repugnância com a divulgação de que o jornal determinara a intercepção de mensagens de voz deixadas no celular da menina inglesa Milly Dowler, sequestrada em 2002 e posteriormente encontrada morta. Sir Brian Leveson disse que houve um “erro de administração e de conformidade” por parte do News of the World, um jornal de 168 anos que Murdoch fechou em julho de 2011, acusando-o de “um desrespeito geral pela privacidade e pela dignidade individuais”.
Falando após a publicação do relatório, Leveson disse que embora a imprensa britânica goze de “um espaço privilegiado e poderoso em nossa sociedade, suas responsabilidades foram simplesmente ignoradas”. E disse mais: “Uma imprensa livre numa democracia chama o poder à responsabilidade. Porém, com umas poucas e honrosas exceções, a imprensa britânica não desempenhou esse papel fundamental no caso de seu próprio poder”.
Adiante, afirmou: “A imprensa precisa estabelecer um novo órgão regulatório que seja verdadeiramente independente de líderes da indústria de mídia, do governo e dos políticos. Uma vez garantida a independência, a estabilidade de longo prazo e os benefícios genuínos à indústria não poderão ser consumados sem uma legislação”, disse Leveson, acrescentando: “Isto não é e não pode ser caracterizado, de maneira razoável e justa, como uma regulação estatutária da imprensa”.
Imprensa indiferente à privacidade
O relatório dedica uma seção inteira ao News of the World. Utilizando vários estudos de caso surgidos do depoimento das testemunhas, descreve uma redação sob pressão intensa para produzir matérias com exclusividade e rapidamente, cheia de jornalistas com atitudes arrogantes e às vezes cruéis para com a privacidade e os sentimentos das pessoas de quem fazem a cobertura. Sir Brian Leveson disse que os repórteres obtinham constantemente informações ilegais sobre as pessoas que cobriam, assediavam e ameaçavam essas pessoas a cooperar e escondiam suas identidades de jornalistas para apurar as matérias.
Ao concluir a seção sobre prática e cultura ética no jornalismo, Leveson afirmou reconhecer que “a maior parte do que a imprensa faz é bom jornalismo, livre do tipo de vícios a que tive que me referir”. “Porém”, diz ele, “é essencial que a necessidade por um novo começo da regulação da imprensa seja amplamente adotada e que seja implementado um novo regime a partir de agora.”
No atual sistema de autorregulação, exercido pela Comissão de Reclamações de Imprensa (Press Complaints Commission – PCC), na prática os jornais se regulam a si próprios. O relatório recomenda a criação de um novo órgão regulatório independente, com poderes para multar um jornal, em caso de transgressão, em até o equivalente a R$ 3,3 milhões, composto por pessoas que não sejam editores na ativa, legisladores ou personalidades do governo.
No relatório, o juiz escreveu que ouviu um grande número de testemunhas que deram exemplos de como a imprensa havia instalado escutas em seus telefones, como as tinha seguido, e como interferira ilegalmente em sua privacidade para obter números de telefone e históricos hospitalares nas apurações de matérias sobre elas. O tratamento de cidadãos que se tornam personalidades públicas, como os pais de Madeleine McCann, a criança que desapareceu durante as férias que a família passava em Portugal, ou a menina Milly Dowler, indica “uma imprensa indiferente à privacidade individual e informal em sua abordagem da verdade, mesmo quando as matérias eram potencialmente nocivas para as pessoas citadas”.
Políticos cultivando a imprensa
Resumindo o que foi ouvido durante o inquérito, o juiz descreveu vestígios de “indiferença cultural por parte da imprensa em relação à privacidade individual e à dignidade”. E sublinhou: “O tema abrange provas de que parte da imprensa usou de meios aéticos e/ou ilegais para acessar informações particulares, incluindo escutas telefônicas, violação de e-mails, roubo e vigilância sigilosa. Também abrange provas de que os jornais obviamente publicaram informações confidenciais sem qualquer interesse público. Assim como assediaram pessoas para conhecer suas histórias e de suas famílias, foram insensíveis ao investigar e publicar reportagens sobre morte e tragédia e não proporcionaram proteção adequada às crianças.”
Quando da publicação do relatório, havia a expectativa quanto ao que este iria dizer sobre as relações aparentemente íntimas entre personalidades do governo britânico e donos de jornais, em especial Rupert Murdoch, que depôs no inquérito Leveson acompanhado por seu filho James. O juiz disse que “as provas irrefutáveis são de que as relações diárias entre políticos e a imprensa são robustas e gozam de boa saúde, desempenhando as funções de vital interesse público de uma imprensa livre numa democracia vigorosa”.
Porém, também disse que, em outras questões, “os políticos conduziram-se em relação à imprensa de uma maneira que não serviu o interesse público”, arriscaram-se a “tornarem-se vulneráveis a influências que nem são conhecidas nem são transparentes”. Esses políticos, segundo Leveson, passaram tempo demais cultivando a imprensa em detrimento de seus “deveres públicos”. Falando após a publicação do relatório, o juiz Brian Leveson disse que políticos experientes aceitaram o fato de que sua relação com a imprensa fora próxima demais. “Eu concordo com isso”, disse Leveson. [Com informações de Alan Cowell e Sarah Lyall, do New York Times, 29/11/2012]