Friday, 15 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1314

Samba triste

Voz suave e fina, Anna de Hollanda soa com delicadeza requintada cantando “Samba Triste” na caixa de CDs de Paulo Vanzolini, "Acerto de Contas". O zoólogo e músico participava dos saraus na casa de Sergio Buarque de Holanda, na Rua Buri, em São Paulo. Da mãe Maria Amélia aos sete filhos do historiador, todos cantavam, “mas as mulheres estão entre as melhores vozes do Brasil”, insiste Vanzolini, citando Cristina, Anna, Miúcha, Piii…

O tiroteio brutal que tirou de cena a sexta filha e primeira mulher a encabeçar o Ministério da Cultura foi um estrondo contrastando com a tonalidade rara da voz nos nossos ouvidos. Um eco crescente desde janeiro de 2011, quando Anna assumiu Brasília até o último dos 20 meses em que se equilibrou no cargo sem piar. Foi chamada de retardada e autista pelo cientista social Emir Sader, que pelas críticas seria desconvidado para dirigir a Casa de Rui Barbosa. No primeiro carnaval carioca, Anna foi tema do bloco Tomara que Caia.

Era uma voz destoante em Brasília, na capital onde ao sair admitiu que não sabia jogar o jogo sujo e sem ética. “Eu era a Geni”, disse na primeira entrevista (Folha de S.Paulo, 9/12/2012) em que desopilou, segundo o dicionário Houaiss – cujo autor, aliás, a antecedeu no cargo –, desobstruiu o fígado do excesso de bile negra que causa depressão e mau humor. “Geni e o Zepelim” foi composta pelo irmão Chico Buarque, com quem ela estreou aos 16 anos num conjunto com as irmãs, nos palcos do Colégio Rio Branco. “[Em Brasília] Todo mundo tacava pedra em mim”.

O que esta voz foi fazer em Brasília? Por que ela não empunhou o violão e cantou nas reuniões de Estado até no exterior e manteve seus shows como o ex-ministro Gil? “Se cantasse iam dizer que cantei mal. Se fizesse uma letra e mostrasse uma música nova, iam dizer que era um horror, que eu tinha de me aposentar”, explicou na mesma entrevista, já fora do alvo, em Copacabana.

Anna sofreu pesadelos horríveis ao deixar o cargo de forma humilhante; ou corria para pegar os objetos pessoais no apartamento oficial de Brasília ou seria despojada de tudo de qualquer jeito. “No início eu tinha a Dilma, o apoio-mor, mas na hora da pressão ela teve de ceder na cota dela e fazer acordos, né? Ou você acha que a Dilma pode fazer tudo que ela quer?”

Jogo dos contentes

Na sua última entrevista – O Globo, domingo (17/3) – ela explica nas entrelinhas o jogo de cadeiras da substituição. Martha Suplicy topou apoiar Fernando Haddad para a prefeitura de São Paulo – da qual foi alijada por Lula – mas queria um ministério e, nessa, “Geni” não cantou mas dançou.

Numa foto de rosto tranquilo dizendo que vai gravar e vender canções na internet, Anna explica em O Globo que o selo terá um site de e-commerce. “Quero que nessa página as pessoas possam ouvir pedaços da música que pretendem comprar, ver a pessoa que canta ou que toca… Cogito, sim, a possibilidade de captar verba através do MinC. Passei mesmo para o outro lado do balcão.” A internet, a remoção do selo Creative Commons para reproduzir conteúdo livre na web, a defesa do ECAD (Escritório Central de Arrecadação e Distribuição, responsável por receber e pagar direitos autorais aos músicos do país), o pé firme para impedir a liberação de direitos dos artistas na internet como queria Gilberto Gil, a não armação de barraca diante do corte no orçamento no Ministério da Cultura no total de R$ 766 milhões – tudo colocava Anna no lugar da Geni ou de outra personagem de Chico Buarque, Ana de Amsterdam, uma “carta marcada”.

A voz calou. A explicação do primeiro ano de gestão foi por meio de uma carta, assim mesmo lida pelo secretário e ator Sergio Mamberti. Levou vaia dos ativistas no teatro Odeon durante a abertura do Festival Internacional CulturaDigital.Br., que envolve uma rede de produção e criação do Brasil todo e debate software livre, direito autoral na internet. E nesses pontos a então ministra não voltou atrás. “Foi um assunto do qual eu realmente não abri mão e cheguei a receber ameaças diretas e claras por conta disso. Ouvi coisas do tipo: ‘Ou você muda o discurso e a lei do direito autoral ou vão fazer um inferno na sua vida e você não vai aguentar’. Quando ouvi isso, respondi: ‘Mas estão batendo em mim desde que entrei! É sério que agora vão me ameaçar? Então podem continuar batendo. Eu não vou voltar atrás’. E não voltei mesmo”. Depois, ela qualificou: “Sofri um bullying virtual”.

Na primeira entrevista ao sair da alça de mira ela conseguiu reagir cantando letra de sua autoria “Para Voltar”, com música de Claudio Guimarães:

“Fui, voltei, provei,/ Meu grande amor,/ Que eu nunca esqueceria./ Não fiquei, jurei,/ Bom pagador/ Que eu não e nada mudaria./ É, talvez tenha sido bom,/ Melhor para lhe mostrar/ Que eu sei de onde vim./ Sim, não tinha que me furtar,/ Melhor era enfrentar/ Para voltar por fim.”

Em Brasília ninguém ouviu a voz da ministra. Qual é a voz da ministra?, perguntava Eliana Cantanhêde na revista Serafina da Folha de S.Paulo (outubro 2011). Desconfortável, peixe fora d’água, despreparo dolorosamente evidente, quem é ela? Continua sendo uma incógnita, incomunicável, faz o jogo dos contentes – Anna era a preferida dos ataques e dos manifestos. E ninguém ouvia a voz da ministra – este, o seu estilo.

Virtual e impresso

Anna foi antecedida por José Aparecido de Oliveira quando a Cultura se desvencilhou do Ministério de Educação e nasceu o MinC, em 1985, por Aluísio Pimenta, Celso Furtado, Hugo Napoleão Neto, José Aparecido de Oliveira na segunda gestão, Ipojuca Pontes, Sergio Paulo Rouanet, Antonio Houaiss, José Jerônimo Moscardo de Souza, Francisco Weffort, Gilberto Gil, Juca Ferreira. Alguns notáveis, alguns que ficaram na história, alguns que não disseram a que vieram.

A cultura neste país sempre foi o patinho feio, sempre levou os maiores cortes do orçamento, sempre foi o que menos importava. Precisa um corte? Corta na Cultura. Um dos manifestos que circularam nesse período, encabeçado por Marilena Chauí, admitia que “não é possível entrar no século 21 equipados com uma ‘superestrutura mental’ que data do século 19. É um engano gravíssimo um Estado contemporâneo não dar a devida importância à agenda das políticas culturais, pois a economia sem a cultura não pode mais do que propagar a desvalorização de uma sociedade, colocando-a a mercê de interesses estritamente econômicos”.

Anna foi a pior ministra? Ou a que menos soube reagir e se defender? “Pareço frágil, mas sou forte”, explicou ao sair. “Depois que entrei no ministério… minha voz acabou… O emocional desliga a voz, o ataque pessoal desliga a voz.”

Outras vozes de artistas poderiam ter se calado, como a de Regina Duarte “tenho medo” de Lula, ou Marília Pêra apoiando Collor. A de Anna, calou.

Sofreu bullying virtual e impresso, e todas as reportagens negativas ou insinuando que ela teria chegado lá, inclusive na música, por ser a irmã do Chico. Poucos apanharam tanto, poucos teriam resistido em silêncio. Quando saiu, uma carta assinada por diferentes movimentos sociais da cultura dizia que a posse de Martha Suplicy significava “a possibilidade de recuperar a grandeza e a relevância da ação do Ministério da Cultura”. E mais azucrinação em cima de Anna, acusada de “omissão, conservadorismo”. Ela já tinha vivido a burocracia estatal na Funarte, mas a voz delicada nunca tinha chegado a Brasília. Chegou e emudeceu. A voz devia se perguntar o que Anna foi fazer em Brasília. Agora ela vai se soltar, mesmo que num samba triste.

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Norma Couri é jornalista