Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Ser ou não ser ‘Charlie’

A multidão que tomou as ruas de Paris no domingo (11/1) para defender os valores republicanos e protestar contra “todos os fascismos” – enfrentando ao mesmo tempo o terror e a extrema-direita, empenhada no cultivo do ódio aos imigrantes pobres – não deixou dúvidas quando à força da consigna “Eu sou Charlie”, disseminada logo após a sangrenta investida contra o semanário satírico francês, na quarta-feira (7/1). Porém, com a mesma velocidade, embora sem equivalente vigor, apareceram contestações a essa expressão, com pelo menos dois sentidos distintos: um, de crítica à hipocrisia dos que diziam aderir a uma rebeldia jamais praticada; outro, de crítica ao próprio jornal alvo do ataque.

Antes de mais nada, seria preciso esclarecer que assumir-se “Charlie”, naquelas circunstâncias, não significa aceitar ou concordar com a linha editorial da publicação, mas repudiar um ato de barbárie. A respeito disso não deveria haver nenhuma hesitação ou ressalva.

Mas houve, e os que denunciaram como ofensivas e mesmo racistas e xenófobas as charges publicadas pelo jornal acabaram justificando o que ocorreu: embora implicitamente, sugeriram que, afinal, aqueles jornalistas fizeram o que não deviam e tiveram o que mereceram.

Há aqui duas ordens de questões: a primeira, mais imediata, sobre os limites do humor e da liberdade de expressão. A outra, mais ampla, sobre os valores a serem respeitados nas variadas culturas.

Sátira e liberdade de expressão

As dificuldades de se discutir a primeira questão já foi resumida neste Observatório por Luciano Martins Costa (ver “O buraco é mais embaixo”). Sobre essas teorizações, o cartunista Laerte (ver aqui) observou:

“Em primeiro lugar, que o humor é humano, não existe humor que ridicularize coisas ou animais. É sempre humano. Em segundo lugar, é sempre grupal. Não existe humor produzido nem por um indivíduo nem para um indivíduo. Terceira coisa é algo que Bergson falava, que acho interessante, que nunca consegui apreender totalmente, é a ideia de que o alvo da ação humorística é o momento em que o ser humano deixa de ser humano, quando ele age mecanicamente. Quando se coisifica”.

Em outra entrevista (aqui), Laerte ressaltou a particularidade daquele jornal e a tradição satírica e iconoclasta tipicamente francesa:

“Temos de entender o Charlie Hebdo dentro do contexto histórico. Os franceses começaram a fazer charge política na época da Comuna de Paris. Eles arriscaram tudo e nunca foi fácil. Foram decapitados, presos, exilados, sofreram o diabo. E a agressividade do trabalho deles nunca diminuiu. A França não só comporta como exige a presença de um humorismo desse tipo. No Brasil, a gente nunca produziu uma coisa assim”.

Em entrevista para o caderno “Aliás”, do Estado de S.Paulo (11/1, ver aqui), o sociólogo Michael Löwy sustentou que as charges do Charlie não poderiam ser acusadas de estimular o ódio:

“(…) acredito que a liberdade de imprensa e a liberdade de expressão devam ser considerados princípios fundamentais. Entretanto, há formas de expressão que realmente resvalam na incitação ao ódio e deve haver leis contra elas. Na França, há. Quer dizer, é crime estimular o ódio contra um grupo religioso ou étnico ou o que seja. Não era o que fazia Charlie Hebdo – uma coisa é incitar o ódio contra religiões, outra coisa é ironizá-las satiricamente”.

Recordando a tradição da esquerda francesa, “anticlerical, antirreligiosa, ateísta”, Löwy defendeu que “a sátira faz parte da natureza de uma imprensa livre, irreverente, independente. E isso deve valer para qualquer tema. Qualquer um deve poder ser satirizado – o rei, a presidente, o profeta”.

Pensando no “outro”

Porém, não é porque podemos fazer certas coisas que devemos fazê-las. Esta é uma questão ética essencial, que diz respeito às nossas escolhas. Foi precisamente o sentido da crítica de Joe Sacco, famoso por seus trabalhos de reportagem em quadrinhos sobre a Palestina e Gaza: no Guardian de sexta-feira (9/1, ver aqui), ele mencionou a situação de crescente rejeição aos muçulmanos na Europa como um elemento que deveria levar os jornalistas a pensar duas vezes antes de fazer certas sátiras. “Quando traçamos uma linha, frequentemente cruzamos outra. Porque traços num papel são uma arma, e a sátira existe para cortar até o osso. Mas o osso de quem? Qual é o alvo, exatamente? E por quê?”

Para fundamentar, sugeriu pensar sobre as consequências de uma sátira aos judeus na Alemanha de 1933, ano em que Hitler se tornou chanceler. E tentou o difícil exercício de se colocar no lugar do outro, para tentar entender por que os muçulmanos não achariam graça ao verem Maomé ridicularizado.

É um argumento bem diferente da contestação imediata e radical aos supostos mau gosto e desrespeito do trabalho produzido pelo Charlie. Inclusive porque, no caso específico, seria preciso levar em conta que o problema não é a escatologia. Se os muçulmanos não admitem a representação de seu profeta, então não é que aquelas formas de representação tenham sido ofensivas: a ofensa é a própria representação. É aceitável curvar-se aos dogmas de uma religião e estabelecer aí os parâmetros para o exercício da crítica?

Nunca será demais lembrar – aliás, ao contrário do que sustenta a nossa imprensa, que não perde uma oportunidade para mistificar sobre esse tema e tentou imediatamente associar o atentado terrorista na França às iniciativas de regulação da mídia –, nunca será demais lembrar que não existem direitos absolutos, e que as liberdades de imprensa e de expressão têm, sim, um limite. Esse limite é dado pela lei. Exclusivamente pela lei, que há de punir os abusos. Jamais pelas armas, sob nenhuma hipótese.

Os desvios do multiculturalismo

Entre as muitas charges divulgadas logo após o ataque terrorista em Paris, uma chamou especial atenção: a republicação do trabalho do cartunista Michael Shaw, na revista New Yorker, em 2006, ironizando a onda de protestos contra o Charlie, que reproduzira desenhos originalmente veiculados por um jornal dinamarquês satirizando Maomé. “Por favor, aprecie este cartum cultural, étnica, religiosa e politicamente correto de forma responsável. Obrigado”, escreveu, sobre um retângulo em branco (ver aqui).

De fato, no limite, é assim mesmo: sempre haverá quem proteste e, para não contrariar ninguém, a saída é o silêncio.

Os protestos contra as supostas ofensas resultantes das sátiras estão ancorados na perspectiva multiculturalista que, de início, teve um papel fundamental na denúncia do etnocentrismo e seus muitos e tantas vezes mortais preconceitos mas, com o passar do tempo, derivou para um relativismo que nos leva a aceitar, ou pelo menos a tolerar, todas as práticas, mesmo as mais abomináveis, como legítima expressão de culturas particulares. E a rejeitar, em contrapartida, os valores universais cultivados pelo Iluminismo, que ultrapassam as particularidades de cada cultura e nos permitem reconhecer-nos como humanos.

Num artigo em que discorda da unanimidade em torno da palavra de ordem sobre Charlie e aponta o oportunismo dos chefes de Estado presentes à passeata em Paris – e o breve percurso que fizeram estaria a demonstrar, simbolicamente, o abismo entre esses políticos e o povo na rua –, o jornalista Carlos Fino indaga sobre as origens do ódio assassino, aponta a inutilidade das medidas para contê-lo e busca as raízes do problema:

“Ao trazerem para dentro do seu território, quando terminou a aventura colonial, ou por via da globalização, largas camadas populacionais de uma cultura diferente e até oposta, boa parte da Europa passou a ter no seu próprio seio duas visões radicalmente diferentes de estar, pensar, sentir e agir.

(…)

“A alternativa que se coloca, portanto, é esta – queremos vencer e impor ao outro o modo particular de sentir e de ser do nosso grupo, ou, em nome da convivialidade e da aceitação do que é diferente, negociamos para chegar a um compromisso razoável?”

Não se trata, porém, de querer vencer, mas de recuperar a perspectiva universalista que a onda do multiculturalismo esfacelou. E que carrega consigo exatamente a valorização do diálogo, precisamente no postulado iluminista esperançoso de que as ideias, e não os homens, é que deveriam brigar. Entretanto, o desejo esbarra na essência dos fundamentalismos, islâmico ou quaisquer outros: o dogma, que exclui a hipótese de crítica e, consequentemente, anula a possibilidade de diálogo.

Talvez por isso, como disse Laerte, não devêssemos pensar que o assassinato dos chargistas foi um ataque à liberdade de expressão:

“O objetivo real não é enfrentar o ataque humorístico, o objetivo real é político. (…) Acho que estão cagando pra liberdade expressão.

“(…) Houve um ataque à liberdade de expressão, mas não é este o objetivo estratégico. Por que não atacam a direita anti-islâmica? Porque não interessa. Querem criar uma confusão que visa comprometer todo o sistema. (…) Eles sabem que o sentimento xenófobo vai se exacerbar, e isso pode gerar políticas militaristas de intervenção no Oriente Médio – isso tudo interessa ao Estado Islâmico, um grupo que não está ligado à ideia de construir um Estado, está ligado em construir guerra”.

E de guerra os líderes políticos que compareceram à passeata de Paris entendem bem, por mais que se digam empenhados na paz. 

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Sylvia Debossan Moretzsohn é jornalista, professora da Universidade Federal Fluminense, autora de Repórter no volante. O papel dos motoristas de jornal na produção da notícia (Editora Três Estrelas, 2013) e Pensando contra os fatos. Jornalismo e cotidiano: do senso comum ao senso crítico (Editora Revan, 2007)